quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Azul é a cor mais triste

Quatro irmãs. Uma delas já falecida desde o momento em que começamos a acompanhar a narrativa. As outras três tentando lidar com o luto: Avery, com sua frieza lúcida; Bonnie, lutadora de boxe estoica; e Lucky, constantemente comparada a um lobo e com a personalidade selvagem.

Se, como disse Antonio Candido no ensaio "O direito à Literatura", precisamos da ficção, o romance As irmãs Blue, de Coco Mellors, foi-me proveitoso para elaborar algumas questões internas que andam me rondando.

Conforme se depreende da leitura de Recado do nome, de Ana Maria Machado, os nomes das personagens, numa obra literária, fornecem poderosas pistas sobre esses entes fictícios e sobre a narrativa em si, podendo consistir numa eficaz chave interpretativa.

Quanto ao romance de Coco Mellors, pode-se dizer, com relação ao sobrenome indicado já no título, que a cor azul, no contexto cultural dos Estados Unidos, carrega uma conotação de tristeza, e, por curioso que seja, o drama das irmãs do romance de Mellors nos proporciona um entretenimento prazeroso e leve (ainda que por vezes sejamos expostos a um verdadeiro turbilhão) e a trama é poderosa em nos conduzir à imersão.

Porém, algo que tenho notado nas obras literárias contemporâneas escritas em língua inglesa é o número excessivo de comparações, que geralmente beiram o ridículo, tal qual: "Era uma bela tarde de verão, e a luz, enquanto eles subiam a ladeira, era como o amarelo intenso da boa manteiga francesa."

Na edição em português do Brasil de As irmãs Blue, encontra-se, na mesma página de onde foi retirada a citação acima, outra comparação, sem falar da que está presente na página anterior. Daria pra fazer uma pesquisa de quantas vezes aparece no romance esse recurso, o mais básico das figuras de linguagem.

Mas eu seria ingrata se dissesse que não tirei proveito dessa leitura. O forte da ficção de Coco Mellors a que tive acesso é a construção das personagens que dão título ao livro, quatro irmãs com personalidades complexas e bem distintas umas das outras, cada uma com suas peculiaridades e não propriamente se encaixando tal qual um quebra-cabeça, pois vezes demais ocorrem atritos, comuns em pessoas com esse grau de parentesco.

E aí entra outro ponto forte do romance: diálogos bem encadeados, às vezes com um toque de humor, mas na maioria das vezes profundos e reveladores, que, junto com outras passagens que externam a personalidade das personagens, ressoam em nós por ecoar nossos "exatos pensamentos e sentimentos", tal como reflete Avery, a irmã mais velha.

Convém observar também que, ainda relacionado ao sobrenome da família, mais para o final do livro a escolha da autora se elucida de modo mais aprofundado. E, com advertência de spoiler sutil, mas que se trata de conhecimento prévio que estragaria muito a fruição da obra, prossigo: há, em nossa sociedade, todo esse alarde quanto à descriminalização do aborto, mas será que a maternidade compulsória não cria uma prole doente e, em consequência, uma humanidade doente?

Enfim, o drama das irmãs Blue permite que enxerguemos com mais naturalidade nossas próprias tragédias cotidianas. Nossa vida consiste numa rede intricada de relações que muitas vezes desembocam em interações embaraçosas, e uma obra que mostra que isso é mais comum do que se imagina cumpre sua função. E a fruição de um enredo bem construído, a despeito de alguns (talvez irrelevantes) problemas de revisão e/ou tradução, ajuda (ainda com Antonio Candido) a organizar coisas dentro de nós, o que talvez não ocorresse de outra forma.

Coco Mellors, com seu segundo romance, dá sinais de que podem vir outras produções boas por aí.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

No crédito ou no débito?

 


Alan Pauls tem uma escrita complexa, com períodos longos, portanto exige pleno envolvimento do leitor, o que pode ser útil neste momento em que nossa concentração está tão deteriorada. Ajuda a fortalecer o foco.

Com relação ao romance História do pranto, as lágrimas do protagonista são o troféu que seu pai exibe aos amigos, naquela fase em que os adultos em geral exaltam entre si a lascívia precoce ou as altas habilidades, por exemplo, da prole que mal acaba de deixar de engatinhar. No caso do personagem de quem não nos é informado o nome, no caso dele, como dizíamos, o que seu pai ostenta é a sensibilidade exacerbada, que enternece seu genitor, e com seu pranto o infante compra ou paga coisas.

Até que resolve se tornar avaro (amadureceu? deixou para trás a pieguice?) e para de ofertar essas gotas salgadas. Mas não é mais capaz de reverter o processo. Já adolescente, vê seu amigo chorar por consequência de um acontecimento político transmitido pela televisão e não consegue, por mais que queira, mimetizar esse comportamento.

As milhões de lágrimas que seu amigo derrama chegam a lhe causar inveja, como se "contasse dinheiro na frente dos pobres". Assim, por evidente, o escritor argentino Alan Pauls tece uma relação entre o choro e o dinheiro.

O protagonista, que acompanhamos desde pequeno - ele que, na abertura do romance, com sua roupa de Super-Homem experiencia justamente um momento de fraqueza e vulnerabilidade -, apresenta uma incrível habilidade para escutar as pessoas, que mal se aproximam dele, começam a verter nos ouvidos desse jovem seus segredos mais escabrosos. E, mesmo com tão pouca idade, consegue compreender tudo que lhe é confidenciado. Isso também impressiona seu pai.

A palavra "verter" aqui não foi utilizada em vão. Logo no começo do romance, Alan Pauls faz alusão à peça Hamlet, como se comparasse as confissões a um veneno, e mais adiante, na trama, utiliza novamente o mencionado verbo, ecoando em outros momentos, ao longo da narrativa, essa referência shakespeareana.

Acompanhamos também outras peripécias desse nada supérfluo personagem numa narrativa curta e gostosa, que pode ser tida como um romance de formação. Com História do pranto e também com seu O passado, Alan Pauls prova que a boa Literatura Argentina vai além de Cortázar e Borges. E vale dar uma chance a um autor ainda vivo, que é o caso de Pauls.

A minha edição é da extinta Cosac Naify e a tradução é de Josely Vianna Baptista, que "verteu" para o idioma português o restante da trilogia da qual faz parte História do pranto (contudo, cada volume apresenta uma história independente), assim como as demais obras do autor que já estão publicadas no Brasil.

domingo, 25 de julho de 2021

Há algo de podre no reinado da Globo

 


“O que é necessário é o direito

de publicar o que se crê ser verdade,

sem precisar temer intimidações ou

chantagens de qualquer lado”

George Orwell


Partindo do pressuposto de que “o inimigo do meu inimigo não necessariamente é meu amigo”, iniciaremos a explanação que visa correlacionar o universo fictício de 1984 a dados de nossa realidade material e concreta.

O referido romance, de autoria de George Orwell, não é “banal”, como se disse recentemente. Tal adjetivo associado a livro tão emblemático só revela uma “demofobia”, já que a mencionada obra caiu no gosto popular (e não em vão, visto que o autor faz análise precisa do momento em que vivia, o que lhe possibilitou projetar um futuro hipotético que muito se assemelha a nossas condições atuais – embora o objetivo de Orwell não tenha sido o de tecer uma profecia, ele contudo esclarece que uma sociedade semelhante à do universo fictício de 1984 poderia vir a existir), e a admiração destinada a essa obra por parte de grupos de diferentes vieses ideológicos só deixa entrever a genialidade de seu autor.

A sociedade descrita no romance é “socialista” (ao menos onde vive Winston, o protagonista), mas, na prática, não se vincula ideologicamente ao que se concebe como socialismo (dentro e fora da ficção), ou, nas palavras do próprio autor: “É óbvio que esses novos movimentos [que se denominavam socialistas] emergiram dos velhos, cujos nomes tendiam a conservar, pagando um falso tributo a sua ideologia”.

E, tal qual ocorre na referida ficção, somos instados a acreditar que “o padrão médio de conforto material aumenta ininterruptamente”, quando, na verdade, em nosso mundo concreto, sob a égide do Capitalismo, nunca se passou tanta fome.

É necessário reiterar que temos ciência de que o modo de produção no romance de Orwell é socialista, ainda que equivocadamente, mas em nosso mundo concreto há esse discurso pronto de que o Capitalismo é o melhor modo de produção no que tange à distribuição de riquezas, o que de modo algum é verdade, e aqui é importante frisar que há uma verdade, sim, ao contrário do que a visão pós-moderna de mundo nos induz a crer. Para ilustrar com palavras do próprio Orwell: “Havia verdade e havia inverdade, e se você se agarrasse à verdade, mesmo que o mundo inteiro o contradissesse, não estaria louco”.

(Ressalte-se que, de acordo com Raymond Williams, Orwell, em seu posicionamento pessoal, optava pelo socialismo democrático e se opunha ao socialismo autoritário).

Também estamos em condições análogas às dos personagens de 1984 quanto à crença de que “mudar de opinião, ou mesmo de atitude política, é uma confissão de fraqueza”. A analogia se dá pois ideologicamente somos todos instados a acreditar que o Capitalismo é o único modo de produção viável ou a melhor das opções, e as pessoas que denunciam as mazelas do Capitalismo são vistas como “fracas”, ou “ingênuas”, como na frase falsamente atribuída a Winston Churchill e que segundo a Wikipédia é de autoria de Georges Clemenceau: “Um homem que não seja um socialista aos 20 anos não tem coração. Um homem que ainda seja um socialista aos 40 não tem cabeça”.

(E há quem questione a credibilidade da Wikipédia, mas essa possibilidade de adulteração da realidade tem justamente a ver com o romance que estamos abordando).

Voltando à frase de autoria duvidosa, interessante que seja sinal de “ter cabeça” defender um sistema no qual você é explorado. Pois, vamos combinar, né, gente? Apenas uma ínfima minoria não é explorada no Capitalismo.

Ainda quanto à questão da ideologia, o trecho de 1984 disponibilizado a seguir é bem ilustrativo: “Todas as crenças, hábitos, preferências, emoções e atitudes mentais que caracterizam nosso tempo são, na verdade, maneiras de reforçar a mística do Partido e de impedir que a verdadeira natureza da sociedade atual seja percebida”.

O Partido, na ficção de Orwell, é um partido único, que centraliza o poder na Oceânia, onde vive o protagonista Winston. E, se esse conjunto de crenças e hábitos é, no romance, propagado pelo Ministério da Verdade, ou MiniVer, em nosso mundo quem se dá a esse trabalho é a Grande Mídia. Um único exemplo desse conjunto de ideias que nos é vendido é que somos instados a acreditar que ser “bacana” (palavra que adquiriu conotação horrível de tanto ser mal empregada e emprego este também vinculado a um viés ideológico específico) é possuir a bolsa da marca X ou Y, mesmo que você tenha que se matar de trabalhar para adquiri-la, e depois vender a imagem oposta ao que realmente é: mero(a) trabalhador(a) assalariado(a).

Como bem salientou o Prof. Dr. Luís Eustáquio Soares (UFES), a Rede Globo é um partido político (se não no sentido estrito, ao menos atua como um). E, complementando a dedução do referido professor, assim como o Partido do romance de Orwell, somos instados a crer que é verdade o que a Rede Globo quer nos induzir a acreditar que é verdade. Como exemplifica novo trecho de 1984: “Tudo o que o Partido reconhece como verdade é a verdade. É impossível ver a realidade se não for pelos olhos do Partido”. Deste modo, tal emissora, assim como as demais, tem sua parcela de responsabilidade quando se questiona a credibilidade em relação ao que ela(s) veicula(m) em seus noticiários. Talvez não propaguem exatamente “fake news”, mas escolhem cuidadosamente como vão embalar/revestir a notícia que nos será vendida.

Ainda quanto à Grande Mídia, o seguinte trecho do romance que ora nos serve de base a reflexões é bem elucidativo: “A invenção da imprensa, contudo, facilitara a tarefa de manipular a opinião pública, e o cinema e o rádio aprofundaram o processo. Com o desenvolvimento da televisão e o avanço técnico que possibilitou a recepção e a transmissão simultâneas por intermédio do mesmo aparelho, a vida privada chegou ao fim. Todos os cidadãos, ou pelo menos todos os cidadãos suficientemente importantes para justificar a vigilância, podiam ser mantidos vinte e quatro horas por dia sob os olhos da polícia, ouvindo a propaganda oficial, com todos os outros canais de comunicação fechados. A possibilidade de obrigar todos os cidadãos a observar estrita obediência às determinações do Estado e completa uniformidade de opinião sobre todos os assuntos existia pela primeira vez”.

Como se observa, no romance 1984 os aparelhos televisivos seriam não apenas transmissores, mas também receptores, ou seja, os personagens são monitorados vinte e quatro horas por dia. A “teletela” é um aparelho que, no romance de Orwell, opera a dupla função: de projetar e também de captar as imagens do que deveria ser a privacidade dos personagens. E se a teletela está presente na sala do programa televisivo Big Brother, como nos lembra Fabio Salvatti no artigo “O Sanduíche-íche e a Teletela” (disponível na internet), por que ela não estaria presente também em nossas casas? (o que é acentuado hoje com a disseminação dos smartphones) Seríamos ingênuos o suficiente para acreditar que a sociedade do espetáculo não aproveitaria a sugestão de Orwell? Se é que já não era uma funcionalidade dos aparelhos televisivos desde o início e que não escapou à observação arguta do autor inglês... Faça o teste: nunca aconteceu de você ver transportado (de maneira adaptada) para um drama fictício da TV uma conversa ou cena ocorrida num seu ambiente íntimo?

E podem me chamar de paranoica. George Orwell também foi acusado disso. De todo modo, pouca diferença faz a existência ou não da teletela num mundo em que praticamente todo mundo tem ciência de que está sendo vigiado (também) pela via dos smartphones.

Interessante também notar a cara de pau da emissora que com o nome de seu programa que atualmente é, pode-se dizer, o carro-chefe de sua programação (ainda que não seja exibido durante todo o ano – mas que o é todos os anos), faz alusão explícita ao romance de Orwell (ainda que a ideia de usar tal nome não tenha sido originalmente concebida pela emissora brasileira).

Cabe ressaltar também que mesmo que a vigilância no referido programa não se dê a partir do aparelho televisivo, conforme sugere Fabio Salvatti em seu artigo, é fato que a vigilância no programa, assim como em nosso dia a dia.

Aí, depois, qual é a solução ante uma pessoa que promove esse “desvelamento” (e não só com relação à vigilância)? Desmoralizá-la, desumanizá-la, fazendo crer que ela não tem dignidade alguma. É fácil para o Partido fazer com que se creia que a pessoa que “não se dispôs ao ato de submissão” de enxergar a realidade tal como Ele quer que a enxerguemos é uma “lunática”, uma “minoria de um”.

Há um esforço constante para que os hereges sejam “derrotados, desacreditados, ridicularizados”, como acontece no romance de Orwell. Ou para que, como observa Raymond Williams, refletindo também a partir do romance 1984, as “figuras públicas dissidentes” sejam vistas como “inimigos públicos”: “não a ‘oposição oficial apropriada’, mas os Vermelhos, Demolidores e Extremistas ‘não-oficiais’ que, ao bom estilo de Mil novecentos e oitenta e quatro, eram vistos como loucos ou culpados de pensamentos-crime”.

Talvez a classe dominante pense que não precisa se apoquentar com o meu discurso, pois, no presente momento, estamos em condições análogas às do universo fictício de 1984: “Nada a temer do lado dos proletários. Abandonados a si mesmos, continuarão trabalhando, reproduzindo-se e morrendo de geração em geração, século após século, não apenas sem o menor impulso no sentido de rebelar-se, como incapazes de perceber que o mundo poderia ser diferente do que é. Os proletários só teriam como tornar-se perigosos se o avanço da técnica industrial exigisse que recebessem melhor educação; contudo, [...] o nível da educação popular na verdade está em declínio”.

Daí se vê o que justifica a atual necessidade de se desmontar as universidades públicas: é perigoso (para a classe dominante) que o povo aprenda a pensar. Mas, diferentemente da previsão feita na ficção orwelliana, o povo pode vir a mostrar sua força.

Atualmente, um dos entraves a essa conscientização que o povo precisa aprender a desenvolver, tem sua relação com a memória, o que é equiparável ao totalitarismo presente nas páginas de 1984: o excesso de informações a que somos constantemente submetidos parece ser algo programado para fragilizar a nossa capacidade de reter informação. Destarte, nossa memória é tão inoperante quanto a dos personagens da ficção de Orwell.

*       *       *

A título de exemplificação, voltemos um pouco sobre o que dissemos com relação à verdade que nos é vendida pelos meios de comunicação hegemônicos: recentemente, Eduardo Leite concedeu entrevista a Pedro Bial, e transmitindo essa entrevista, a Globo quer que acreditemos que ela apoia a causa LGBTQIA+, quando, na verdade, defende o interesse de empresas que, se pudessem, dariam chibatadas na população LGBTQIA+ tal qual os antigos capatazes faziam com os escravos, a título de hipérbole (mas nem tanto). A Rede Globo quer que se creia que a luta LGBTQIA+ deve ser travada apenas dentro dos moldes da sociedade capitalista, quando, nesses moldes, na verdade a situação NUNCA será de fato solucionada. Para saber mais, consultar a excelente matéria veiculada no site do PSTU.

Terminaremos com a deixa, a ser brevemente desenvolvida, de Irving Howe (extraída de um texto também sobre 1984): “o Estado totalitário é intrinsecamente inimigo da liberdade erótica”. Assim, o totalitarismo inverte a equação e aqueles que se permitem o prazer erótico são vistos como inimigos. Pois “tudo o que não é calculado é subversivo” (frase de Howe). Afinal, ainda para Irving Howe, “esses impulsos [sexuais] talvez se revelem uma das forças mais duradouras de resistência ao Estado totalitário” (donde se conclui que o prazer é perigoso para quem detém o poder).

Desse modo, quem ainda se permite, quem ainda se entrega ao deleite erótico é visto como um “monstro social” (e a sociedade em geral também é induzida a enxergar assim quem desfruta do prazer, sem fazer questão de esconder que o faz).

E nem é preciso lembrar que, contraditoriamente, na década de 1980 a própria Rede Globo (apenas uma das instituições para as quais a erotização e a carga subversiva por ela propiciada constitui incômodo) estimulou a sexualidade (até precoce) de milhares de espectadores com o programa da Xuxa, como bem observa a pesquisadora estadunidense Amelia Simpson. Mas isso já daria um outro post.

terça-feira, 27 de abril de 2021

Fundamental


Um livro necessário, O mito da beleza, de Naomi Wolf, não é apologia à feiura ou defesa de que não se use batom, mas crítica a um mito que estabelece um padrão sempre inatingível (e programado para ser assim) e defesa das diversas formas de beleza, até as que incluem as rugas, já que estas são indicadoras de experiência, que no caso dos homens costuma ser valorizada em nossa cultura.

Quando uma mulher pode até ser demitida "por ter perdido sua Imagem de Coelhinha", descortina-se o absurdo da questão.

Para Naomi, o mito da beleza foi criado com o intuito de refrear o feminismo, roubando a energia feminina e mexendo com a auto-estima das mulheres, reforçando sua insegurança.

Pois, assim como a cada geração de mulheres que despertava, a seguinte era induzida a "voltar para casa", uma outra maneira de obstar a conquista das mulheres é fazer com que elas se sintam incapazes, e isto é fácil quando se impõe a elas um ideal sempre inatingível de beleza - elas precisam se sentir aquém (e a estética preencheu muito bem essa lacuna).

As mulheres, conforme sugere Wolf, impõem a si mesmas a obrigação quanto à "beleza", o que acaba por cercear a sua liberdade, pois retira sua autonomia quanto ao próprio destino.

Um padrão de beleza sempre inalcançável, além de desencadear uma frustração constante com o próprio corpo e com a própria imagem, instala doenças comportamentais como a anorexia e a bulimia.

Algo interessante que Naomi Wolf aborda é a QBP - Qualificação de Beleza Profissional - que tem sido "institucionalizada extensamente como condição para contratação e promoção de mulheres", ou seja, uma justificativa para julgá-las pela aparência no ambiente de trabalho, mas que ao mesmo tempo não é um parâmetro muito preciso em suas exigências, de forma a tornar a mulher sempre sem saída se seu caso for levado aos tribunais. Sim, mulheres foram parar nos tribunais e tiveram a causa perdida por seus modos de se vestir ou outras questões ligadas à aparência.

Um diálogo hipotético e imaginário (porém construído de forma que o interlocutor imaginário apresente dados históricos reais) de uma mulher com um advogado, diante de seu guarda-roupa antes de ir trabalhar, ilustra bem como a QBP deixa as mulheres encurraladas. Qualquer que seja a escolha (mais, ou menos, recatada; mais, ou menos, "feminina"), esta pode ser usada contra ela.

Além do mais, o fracasso das mulheres quanto à indumentária (mesmo fora do local de trabalho) é inevitável quando a norma quanto às vestimentas está em "constante transformação". Até porque as regras quanto a isso não param de mudar, e "foram criadas para não parar de mudar". Justamente para manter as mulheres nesse "laço".

Aprofundando a  argumentação com trecho da própria Wolf: "Como a aparência das mulheres é usada para justificar o fato de elas serem molestadas, bem como o de serem demitidas, o que os trajes das mulheres tentam dizer é interpretado erroneamente de forma contínua e deliberada".

O fato de em alguns locais de trabalho ser exigido que os homens usem uniforme, mas não que as mulheres o façam, joga para elas a responsabilidade de qualquer coisa que venha a ocorrer e que puder ser creditada ao seu modo de se vestir. O que deixa entrever mais uma armadilha para obstar (ou ao menos dificultar) a inserção e a permanência da mulher no mercado de trabalho.

Num contexto mais amplo quanto à QBP (que não se refere apenas ao modo de se vestir, mas que pode até induzir a trabalhadora a ver como necessidade uma plástica ou intervenção cirúrgica), depreende-se da narrativa de Wolf que as mulheres não vão selar de vez sua permanência no mercado de trabalho enquanto estiverem sob o controle dessa camisa de força que é o mito da beleza (pode ser que, para alguns, o livro de Naomi Wolf, publicado em 1991, esteja "datado", se se considerar que as mulheres efetivamente conquistaram o mercado de trabalho. Mas sempre podem ocorrer retrocessos - o que esperamos que não ocorra - e os constrangimentos relacionados à QBP ainda se verificam nos dias de hoje).

Ainda segundo Wolf, a QBP deixa as mulheres psicologicamente vulneráveis, o que favorece quem explora sua mão de obra.

Em outro contexto permeado pelo mito da beleza, este, segundo a autora, desmantela a união entre as mulheres, pois as faz julgarem umas às outras pela aparência e incita a competição e a rivalidade, ao transformar uma em adversária de todas as outras.

O mito destrinchado por Wolf também joga as mulheres idosas contra as jovens e vice-versa. Isso as prejudica, ao diferenciá-las do que fazem os homens entre si, ou seja, estes criam uma rede de apoio, mesmo que não travem relações pessoais com cada um dos membros do grupo.

Quanto à sexualidade, a autora dá a entender que esta não necessariamente tem relação com a aparência, e: "Quando os homens e as mulheres se olharem fora dos limites do mito da beleza, haverá maior erotismo entre os sexos, da mesma forma que maior honestidade. Nós não somos tão incompreensíveis uns aos outros quanto neste momento querem que acreditemos ser". E ainda: "A maioria das mulheres, no íntimo, se lhes fosse dada a escolha, preferiria um eu sexual e corajoso e não a imposição de um Outro eu lindo e genérico".

Ainda no campo da sexualidade, há toda uma cultura - desde o rock and roll e piadas à literatura e à pintura - que remete ao desejo masculino, enquanto no que tange ao desejo feminino há uma lacuna cultural que mantém as mulheres numa ignorância sexual.

Isso se desencadeia numa situação que até contribui para um número mais alto de abortos, pois mulheres bem informadas sobre a sua sexualidade e incentivadas a desfrutar do prazer sexual redobrariam a atenção quanto aos métodos contraceptivos. Diz-nos Wolf: "Se a sexualidade da mulher fosse valorizada e estimulada com tal atenção que elas pudessem se proteger sem medo de prejudicar a sensação sexual, metade da tragédia do aborto passaria a ser coisa do passado".

Quanto a isso, interessante a observação que faz Pablo Villaça a respeito do filme Ninfomaníaca, de Lars von Trier: "que um filme sobre o desejo feminino gere tanta polêmica em 2014 é um triste sinal de nosso insistente atraso moral" (trecho colhido em texto disponível no site Cinema em Cena, sobre o volume 2 do referido filme).

E, permitindo-nos aqui uma digressão, por falar nesse filme de Trier, infere-se que este se equivocou na construção da protagonista, pois tal personagem se crê uma má pessoa, e no entanto Joe teve um pai generoso e compreensível e afável e aberto a lhe ensinar sobre sexualidade. Segundo se infere de informações concedidas por Naomi Wolf, seria mais verossímil o contrário: se Joe se enxerga como má, o mais coerente é que ela tivesse sido molestada, pois, de acordo com Wolf, "estudos clínicos de pessoas que sobreviveram ao incesto revelam que elas têm medo de que 'seu prazer sexual não seja uma coisa boa [...] a maioria acredita que foram elas que fizeram algo de errado, que deveriam ser castigadas e que, se ninguém vai fazer justiça, elas mesmas se encarregarão disso'". Tais vítimas, portanto, incorrem em comportamento autodestrutivo e têm tendência à anorexia.

Voltando ao filme de Trier, como o pai de Joe é generoso com ela inclusive fornecendo uma educação sexual sincera e sem tabus, seria mais coerente que ela não se visse como uma pessoa má. Pois estaria mais apta a enxergar a sexualidade como algo natural.

Outro aspecto que o livro de Naomi aborda é em relação à cultura de massas (na época em que o livro foi escrito tal situação era mais recorrente nas revistas destinadas ao público feminino): Wolf não cessa de enfatizar que os anunciantes (muitas vezes diretamente relacionados à indústria da beleza, como empresas de cosméticos e clínicas de cirurgia estética) inclusive têm o poder de decidir quanto ao conteúdo das matérias veiculadas, portanto, estas em sua maioria reforçam o mito da beleza.

Discorrendo sobre as agressivas cirurgias estéticas que são praticamente uma imposição às mulheres, diz-nos a autora de O mito da beleza: "Se todas as mulheres pudessem escolher conviver consigo mesmas como são, a maioria provavelmente faria essa opção".

Como sugere a própria argumentação de Naomi Wolf, a mulher que ousa fazer esses questionamentos em relação ao mito da beleza é acusada de ter algum problema. Mas o que O mito da beleza revela é que a sociedade em geral é que tem um problema com a emancipação feminina, por isso cria formas de refreá-la. Conduzida muito provavelmente por um pequeno grupo que detém o poder e nela incute seus anseios, a sociedade cria mecanismos para dificultar a ascensão das mulheres que está em curso já há algum tempo. E a forma mais evidente - e eficiente - com que isso é feito hoje é através do mito da beleza: "Quanto mais fortes as mulheres se tornassem em termos políticos, maior seria o peso do ideal de beleza sobre seus ombros, principalmente para desviar sua energia e solapar seu desenvolvimento".

Há muitas outras informações relevantes no livro, que é uma leitura agradável de ser feita. Agradável, por ter um ritmo contagiante e fluido, difícil de largar... contudo, à maneira do médico ou do psicólogo em formação, que têm como objeto de comparação eles mesmos, quando estudam doenças ou "desvios" de comportamento, é essa a dificuldade que a leitura apresenta: algumas identificações dolorosas, em relação a esse mito que assujeita (ou já assujeitou, em anterior fase da vida) tantas de nós, talvez todas nós, às vezes mesmo quando dele temos consciência. Assim mesmo é uma leitura necessária, se quisermos romper esse ciclo de opressão e libertar dessas amarras as gerações vindouras (e a verdade é que a linguagem objetiva e leve de Naomi Wolf se sobrepõe a qualquer identificação que possa ser incômoda).

Ler O mito da beleza... é fundamental.

sexta-feira, 5 de março de 2021

O tempo, o tártaro e o desfecho


Antes de mais nada, é preciso deixar claro que não vou dar detalhes quanto ao enredo desse livro do italiano Dino Buzzati, visto que estes podem ser acessados pela via de inúmeras videorresenhas disponíveis no YT. A intenção aqui é apenas compartilhar inferências propiciadas pelo romance O deserto dos tártaros.

O meu exemplar é já bem antigo (pois foi comprado em sebo, pela minha mãe, que me presenteou) e eu, que sei apreciar as coisas (e pessoas) velhas (e aqui o uso do verbo "apreciar" evidencia que o que sinto não é mera "afeição genérica que é própria dos jovens para com as velhas gerações"), fui observando as marcas do tempo: cada nódoa numa página como a marca indelével que nos deixa uma pessoa, uma situação. Uma cicatriz - metafórica ou não.

E esse é um livro também sobre a passagem do tempo. E se tártaro é (as duas acepções mencionadas a seguir se observam igualmente no idioma italiano), além de um agrupamento étnico, também aquilo que se acumula nos dentes, camada por camada, até se petrificar, até se tornar uma película extra, tal qual o revestimento reforçado de uma muralha (ao modo daquelas do Forte Bastiani), nesse caso, tártaro pode ser também uma metáfora para o tempo que se sedimenta e se solidifica conforme passa, tornando-se quase algo autônomo, ao modo de um fóssil que denuncia o que anteriormente fora vivo.

Na tentativa de desenrijecer e rearticular esse tempo fossilizado, assim como na de preenchê-lo, costumamos inventar uma busca que, com relação ao protagonista Giovanni Drogo, é mais uma situação hipotética e não específica que ele vai projetando no futuro, embora haja também uma situação específica que ele aguarda com esperança.

No que diz respeito à nossa trajetória existencial, essa busca é a busca incessante a que todos nos dedicamos (ao mesmo tempo, às vezes sem saber exatamente o que buscamos - como Drogo, portanto) tal como expressa por Walt Whitman: "[...] onde está o que parti para buscar tanto tempo atrás? / E por que ainda não foi encontrado?"

Essa busca acaba sendo uma desculpa para permanecermos no caminho. Um motivo inventado para atenuar o tédio existencial. E se cada um escolhe um motivo diferente, isso só diz sobre a criatividade do ser humano. Existem tantos caminhos quanto há pessoas na Terra. Cada um com sua busca obstinada e única.

Fazendo um paralelo com um outro livro, que me é tão caro (a saber: Moby Dick, de Herman Melville), acontece também, nessa incessante busca por uma busca, que, na falta de jeito de arranjar uma desculpa (motivo) própria(o) para justificar a vida, tome-se a(o) de outrem em empréstimo, como faz Ishmael, entrando de gaiato naquele navio (o Pequod), tal como observado por Harold Bloom: "Ismael se lança a uma busca sem busca que não é sua".

Mas mesmo nesses casos em que se toma a busca de outro em empréstimo, há originalidade, pois aquele que a toma emprestada irá revesti-la a seu modo.

A narrativa de Buzzati também possibilita entrever que, se se deixar sugestionar e ir ficando num lugar que supomos não ter sido feito para nós é passividade, ficar esperando grandes acontecimentos é não só igualmente passividade, como também ilusão.

Assim, no final das contas, na relação entre atividade e passividade, talvez pouco importe qual pesa mais (no que Sartre discordaria, ao que parece): no fim, todos desembocaremos no mesmo mar ("de chumbo") e mesmo aquele rio que percorreu seu trajeto de forma (aparentemente) vã, contudo deixou tracejado no solo seu leito.

Mas talvez uma mensagem importante que se possa extrair do romance de Dino Buzzati é que não precisamos ficar esperando grandes eventos, e sim fruir a vida com as condições que ela se nos apresenta.

(continua depois da imagem)


Quanto a isso, tanto a sabedoria popular quanto a carta "Viagem", do Tarô de Osho, nos dizem que, mais importante que as metas que estipulamos, é a trajetória em si.

E se você esperava um desfecho melhor desse texto que por ora se lhe apresenta diante dos olhos, essa sua expectativa também tem relação com o romance de Dino Buzzati.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Globalização ou Globalitarismo?


Mais que uma resenha, a intenção aqui é dar livre curso às ideias ante a leitura de Por uma outra globalização, obra do geógrafo Milton Santos, fazendo inclusive associação com outros textos (lembrando que imagens e vídeos - e, portanto, documentários - também podem ser considerados textos. Afinal, mesmo uma imagem pode ser lida) e permitindo-nos mesmo a coloquialidade em alguns pontos.

Ao fazer uma leitura do mundo em que vivemos, o autor observa que é mais adequado falarmos em Globalitarismo que em Globalização, pois poucos atores hegemônicos nos submetem a um regime totalitário, e isso, acrescentamos, em grande parte é feito com o suporte da mídia televisiva, que nos vende um discurso e uma ideologia que alimentam os interesses desses donos da situação.

Além de em nossa sociedade globalitária os indivíduos serem classificados de acordo com "sua capacidade de consumir e pela forma como o fazem", existe um consumidor moldado para sê-lo e para consumir produtos específicos, mais condizentes com seus interesses e situações. O consumidor é criado para ser consumidor. E uma das formas como isso é feito é através da mídia, vendendo-nos um discurso que "antecede a tudo", ou seja: antecede até mesmo o consumo e a produção.

Pesquisas de mercado - inclusive feitas através dos dados que fornecemos de maneira gratuita ao usarmos as redes sociais, mesmo aquelas em que supostamente deveríamos ser resguardados com o direito da privacidade - possibilitam a criação de produtos que irão suprir uma demanda identificada em consumidores em potencial.

O discurso antecedendo a produção e o consumo também se manifesta quando se cria previamente um "nicho de mercado" (criação que pode ser favorecida pelas pesquisas mencionadas no parágrafo anterior) e depois se implanta na mente do cidadão a indispensabilidade do bem a ser produzido e consequentemente consumido.

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Por exemplo, ao se hipervalorizar informação e a comunicação, isso nos induz a internalizar que possuir um smartphone é necessário (ao mesmo tempo, a comunicação que realmente favoreceria um elo efetivo entre as pessoas é desmantelada e desincentivada - como acontece ao sermos pré-moldados a abraçar mil demandas individuais enquanto o outro é deixado de lado. Milton Santos enfatiza diversas vezes ao longo do texto como o comportamento solidário vem sendo desestimulado, e mais a frente retomaremos esse ponto).

Ainda quanto à precedência do discurso em relação ao produto e ao consumo, e com relação ao consumidor que é criado para ser consumidor, interessante observar que, segundo informação extraída de "Muito além do cidadão Kane", que é um documentário britânico que mostra aos brasileiros exatamente o que a Rede Globo é, inclusive o que a Globo representa (em mais de uma acepção) para o povo brasileiro, segundo este documentário, como dizíamos, a primeira novela veiculada na TV brasileira (na época, a Rede Globo ainda não existia, importante observar) era patrocinada por uma empresa da área da indústria da beleza.

Pergunta retórica: será que isso tem relação com o ideário das brasileiras, no qual a vaidade ocupa um espaço significativo?

Essa questão do consumidor projetado para sê-lo vale também para a indústria automobilística (e muitas outras): na época em que o poder de consumo foi favorecido no Brasil, até pessoas que antes não tinham condição de ter um carro passaram a adquirir esse bem, pois o carro passou a ser visto como um bem essencial em um país onde não se investe em transporte coletivo, que é de conhecimento geral que no Brasil, ao menos, é um serviço de má qualidade. Como já dizia o meme (e muitos deles são realmente instrutivos): "país de primeiro mundo não é onde pobre tem carro, é onde rico anda de ônibus".

Já até foi veiculada a informação segundo a qual a indústria automobilística está por trás dessa opção deliberada em não se investir em transporte coletivo no Brasil.

Outra observação interessante que Milton Santos faz é que há uma "produção científica, globalizada e voluntária da pobreza". Em outras palavras, há uma pobreza que é construída para ser pobre (com o perdão da tautologia).

Assim, "fracassado" não é só aquele quem a grande mídia quer fazer acreditar que é "fracassado". "Fracassado" é também aquele que é construído para desempenhar esse papel social, por exemplo, cada um dos indivíduos que compõe o mercado de reserva, tão importante para a manutenção do Capitalismo.

Ou mesmo aquele que está empregado, mas recebe mal, pois a pobreza deliberadamente construída para assim o ser também se manifesta na "redução do valor do trabalho" (palavras do próprio autor), o que é justamente possibilitado pelo abundante mercado de reserva, que por sua vez é favorecido devido ao fato de estar o mundo superpopuloso.

Como já dissemos alhures, o mencionado mercado de reserva aumenta o poder de barganha do empregador. É só dizer ao trabalhador que ousa abrir a boca para reclamar do salário e das péssimas condições de trabalho:

"Não se acanhe, a porta da rua é serventia da casa, há milhares de infelizes querendo ocupar essa posição que você está rejeitando, ao ter a audácia de dela reclamar".

Acrescente-se a isso o fato de as empresas em geral aplicarem onde se instalam "[...] uma política cega, pois deixa a construção do destino de uma área entregue aos interesses privatísticos de uma empresa que não tem compromissos com a sociedade local", nas palavras do próprio Milton Santos.

Assim, a própria questão do desemprego não é interessante para a empresa que seja resolvida (ao contrário, como já deixamos evidenciado), ocorrendo o mesmo com a questão do meio ambiente (vide o crime em Mariana) e com muitas outras questões locais, e isso acontece pelo fato de geralmente as grandes empresas estarem majoritariamente (ou mesmo exclusivamente) vinculadas ao capital estrangeiro. Destarte, pouco importa a quem esteja dirigindo a empresa os problemas das comunidades onde esteja instalada.

O fato de a direção das empresas estar geralmente associada ao capital estrangeiro, inclusive dificulta a responsabilização jurídica em casos como o do rompimento da barragem em Mariana, que tanto afetou a população local.

E nem é preciso dizer que Luciano Huck, que agora assumiu publicamente sua intenção de se candidatar à presidência, está, sempre esteve e sempre estará do lado do capital estrangeiro. Consequentemente, com um sujeito desses na presidência a maior parcela dos brasileiros continuaria (botando fé nesse tempo verbal) a ver navios - a exemplo da comunidade afetada pelo crime em Mariana.

E toda essa negligência da direção das empresas com relação ao entorno de onde estão instaladas é apenas um dos problemas advindos com as privatizações.

É aí que entra a soberania das nações. Como nos lembra Milton Santos, as nações não podem ficar tão à mercê da economia internacional e de um pequeno número de grandes empresas que mandam e desmandam.

Nas palavras do próprio autor: "Ao contrário do que se repete impunemente, o Estado continua forte e a prova disso é que nem as empresas transnacionais, nem as instituições supranacionais dispõem de  força normativa para impor, sozinhas, dentro de cada território, sua vontade política ou econômica" e "a cessão de soberania não é algo natural, inelutável, automático, pois depende da forma como o governo de cada país decide fazer sua inserção no mundo da chamada globalização".

Por isso, embora, em Internacionalismo ou extinção, Noam Chomsky toque na possibilidade de um "governo federal mundial", reivindicado por pessoas como Albert Einstein logo após o início da era nuclear, seria mais adequada uma internacionalização que não ocorra por essa via (um governo único) que apagaria as peculiaridades de cada povo, ainda que na noção de nação esteja inculcada tanta ficção para fazer com que indivíduos acreditem ter suficientes características e narrativas em comum.

Quanto a isso, Milton Santos tem uma posição mais sensata, pois compreende a importância da soberania de cada nação.

Outro ponto importante observado pelo geógrafo é o que se ilustra pelo seguinte trecho: "Junte-se a isso [a morte da Política com P maiúsculo] o processo de conformação da opinião pelas mídias, um dado importante no movimento de alienação trazido com a substituição do debate civilizatório pelo discurso único do mercado. Daí o ensinamento e o aprendizado de comportamentos dos quais estão ausentes objetivos finalísticos e éticos": dentre esses comportamentos, a própria competitividade da qual o autor tanto fala, e que também segundo o próprio visa à eliminação do outro.

Resumindo com nossas próprias palavras, não é interessante para a grande mídia, principal alimentadora do projeto neoliberal, que seja, de verdade, disseminado e reproduzido o comportamento solidário, tão caro a Milton Santos.

Na última parte do livro, o autor aborda a diferença entre a cultura de massas e a cultura popular. A popular é espontânea; a de massas, a serviço do mercado (ou seja, das  grandes empresas) faz o que pode para assujeitar a cultura popular, cujo dinamismo por sua vez acaba por incorporar elementos da cultura de massas, e, ao modo antropofágico, oferecer algo realmente rico.

Ao vislumbrar uma outra globalização possível, diferente dessa perversa que a gente vive, e que seria "capaz de garantir para o maior número a satisfação das necessidades essenciais a uma vida humana digna", Milton Santos deposita sua esperança na cultura popular como um elemento vivo que pode nos conduzir a isso que alguns, em tom de  deboche, chamam de utopia, mas que, no fundo, é o que todos queremos (ou ao menos seria o mais sensato a se desejar).

Como disse, no mencionado documentário "Muito além do cidadão Kane" (que foi exibido em 1993 pelo Channel 4, uma rede televisiva pública do Reino Unido), o crítico literário Virgílio Moretzsohn, citando Goethe: "Ler é a arte de desfazer nós cegos, e a pessoa alfabetizada lê, e a pessoa que lê desfaz esses nós".

Então é para isso que a gente lê. Não é para "tirar onda de intelectual". É para ver se a gente para de ver apenas as sombras projetadas nas paredes das cavernas e passa a ver o mundo de fato, livre de falsificações/fabulações ideológicas arquitetadas com o objetivo de nos controlar e nos cegar.

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E não em vão até ao termo "intelectual" se atribui uma carga pejorativa.

Segundo Milton Santos, o papel do intelectual é justamente casar-se "com o porvir, por meio da busca incansada da verdade".

Então, em um mundo no qual não é interessante para quem dita as regras do jogo que a verdade venha à tona, torna-se providencial escarnecer e zombar dos intelectuais.

E é claro que a grande mídia, principal responsável pela manutenção do poder desses que ditam as regras, vai não só dar respaldo a estes que zombam dos intelectuais, como vai alimentar a fogueira.

Além do mais, ainda segundo o geógrafo, como o dinheiro "é indispensável à existência das pessoas, [...] as formas pelas quais ele é obtido, sejam quais  forem, já se encontram antecipadamente justificadas".

E aí cabe um acréscimo final às ideias do autor: as atividades não  remuneradas, ao contrário, por mais nobres que sejam (e aqui refere-se não somente a quem se dedica a reflexões mais elaboradas, mas a outras funções tão nobres quanto, como o aleitamento materno) serão sempre menosprezadas.

sábado, 17 de outubro de 2020

Se ainda é possível reverter a extinção...


Sinto-me na obrigação de fazer veicular certas informações por mim absorvidas através da leitura de Internacionalismo ou extinção, de Noam Chomsky.

O primeiro capítulo do livro é a transcrição de palestra proferida pelo autor em 2016.

O evento ocorreu durante a campanha eleitoral nos EUA no mencionado ano e Chomsky demonstra estupefação ante a omissão de dois temas importantíssimos (que dizem respeito a toda a vida humana na Terra, já que estamos inclusive na iminência de ser extintos) nos debates entre aspirantes a ocupar o cargo de presidente do "país mais poderoso da história", nas palavras do próprio Chomsky, e que, por isso mesmo, tem papel preponderante no destino da humanidade em sua totalidade.

Se dependermos do jornalismo tradicional e de sua fria objetividade (o que também é observado pelo próprio Chomsky, ou seja, a objetividade fria do jornalismo) essas informações não chegam até nós, o que faz, dentre outras coisas, com que, como disse Wallace Shawn em diálogo com o autor, os ativistas pareçam idiotas, já que defendem pautas das quais o grande público muitas vezes não tem conhecimento.

São esses temas o risco real de uma guerra nuclear e o Antropoceno, que é a época geológica que sucede o Holoceno e "definida pelo extremo impacto humano sobre o meio ambiente". Mas, para "indicar melhor as causas do caráter destrutivo da época", já se propôs o termo "Capitalistoceno" - tanto Chomsky não está delirando, como alguns poderiam supor, que Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro também utilizam ambos os termos (Antropoceno e Capitaloceno, aqui com uma pequena variação na grafia, como se observa, mas conservando-se a semântica) no livro com o sugestivo título Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Segundo os autores, inclusive, "é a primeira época geológica em que uma força geologicamente determinante é 'ativamente consciente de seu papel geológico'".

O Antropoceno, que como observam Danowski e Viveiros, "recebeu o 'nosso' nome", é um risco porque essa força geológica - a humanidade - de maneira suicida pode levar à extinção da nossa espécie - e também carregar outras para o fim, de bandeja. E isso devido ao fato de estarmos tornando o meio ambiente incompatível com a vida, sendo uma evidência disso o aquecimento global.

Voltando ao livro de Chomsky, do qual não chegamos a sair totalmente, infere-se também de sua argumentação a má destinação dos recursos. Se os HFCs - hidrofluorcarbonetos - "são gases de efeito estufa superpoluentes" presentes nos aparelhos de ar-condicionado muito utilizados na Índia, "onde o aumento do calor e da extrema pobreza" fazem desses aparelhos uma "necessidade desesperada", por que não se destina verba para ajudar a fazer a transição para aparelhos que utilizem energia sustentável, no referido país, ao invés de se gastar 800 bilhões de dólares para implantar um sistema de mísseis de "defesa", sendo que na prática esses "mísseis de defesa" são "basicamente armas de ataque inicial"?

Chomsky, no decorrer do livro, frisa muito a importância da conscientização e da responsabilidade de cada um, pois cidadãos conscientes podem pressionar governos a tomarem atitudes mais sensatas, como fazer com que os países façam adesão ao TNP (Tratado de Não Proliferação Nuclear) - e Chomsky adverte que isso não é utopia - e mesmo para aqueles que acreditam que Jesus está para voltar dentro de algumas décadas (40% da população dos EUA, de acordo com Chomsky), o ativismo é relevante e não entra em conflito com essa crença - pode-se argumentar, com o objetivo de dialogar com essas pessoas, que devemos desde já pavimentar a estrada que Ele irá percorrer, facilitando Seu trabalho. Afinal não se diz que Deus proferiu as palavras "Faça a sua parte, que eu te ajudarei"? Então as pessoas que têm fé, vão cruzar os braços e deixar a Divindade fazer tudo sozinha?

Propostas como as que Chomsky faz ao longo de todo o livro, como a de que nos mobilizemos, "precisam ser bem-sucedidas. Precisam, caso contrário, estamos condenados".

Ao menos desde Moby Dick tem-se a metáfora de que estamos todos no mesmo barco - e o barco está prestes a entrar em colapso.

Para finalizar com palavras do próprio Chomsky, "não podemos ignorar as realidades do mundo em que estamos vivendo".