quinta-feira, 30 de abril de 2020

O patriarcado e os problemas por ele suscitados presentes no Egito, no Brasil, e em todas as partes do globo


Ontem revi esse filme - Cairo 678, dirigido por Mohamed Diab - e meu objetivo aqui não é fazer uma resenha, mas sim compartilhar três apontamentos que me foram sugeridos pelo enredo da obra, sendo que no último (já aviso de antemão) terá spoiler (também aviso antes do trecho específico).

- Primeiro: a decepção de parir uma menina (ou do conhecimento de que a está gestando, já que a tecnologia hoje possibilita isso), em um mundo tão misógino. E a decepção muitas vezes se revela não exatamente por desgosto dos próprios pais, no sentido de rejeitar aquele ente que já chega ao mundo com toda a carga de desprivilégio decorrente de seu gênero, mas sim no de reconhecer todo o pesar que aquele ser irá passar num mundo dominado por esse patriarcalismo dos infernos. E tal reconhecimento talvez justifique o hábito que se tem em determinadas culturas de se cometer infanticídio logo após o ato de dar a luz uma menina, o que, ao contrário do que usualmente inferimos, pode significar um ato revestido de solidariedade, ao ter o objetivo de poupar aquele ser de todas as dificuldades que obrigatoriamente (num nível maior ou menor) todo ser fêmeo (e mesmo quando trans, observação importante, embora não se aplique a esse contexto específico do parto) irá passar em um mundo dominado por uma irmandade cujo objetivo é justamente oprimir as mulheres (repetimos: em um nível maior ou menor).

- Segundo: sempre defendi que em criança não se deve bater nem "para educar", mas no caso do filme, achei muito boa a lição aplicada a uma criança (obviamente, do sexo masculino, ou seja, um mini-patriarca) que se acha no direito de importunar uma mulher apenas por se sentir hierarquicamente superior ao se encontrar na condição que lhe é conferida pelo simples atributo que carrega entre as pernas. E aqui permito-me uma digressão: certa vez um homem que eu conhecia e que tinha a audácia de se rotular como "feminista", foi a um congresso justamente todo organizado em torno da temática do feminismo e depois demonstrou a mim seu constrangimento quando uma das apresentadoras (que se me permitir revelo seu nome, já que no atual momento político "todo cuidado é pouco" - ao menos para quem quer se poupar, se é que me entendem. De toda forma, não é "qualquer uma", ao contrário, é profissional reconhecida pelo seu trabalho) expôs fotos de vários falos, com o objetivo de ridicularizá-los. 

O conhecido, portanto, julgou "sem cabimento" a postura da apresentadora. Pois, num mundo falocrata, "isso" que - em um nível simbólico e também não-simbólico - tem tanto poder, deve ser ridicularizado, sim (até por pura iconoclastia - é "isso" o que justifica tanta soberania?). 

Então, voltando à questão ilustrada pelo filme, como uma simples criança se acha em condições de cometer um ato que denota um juízo de valor depreciativo, de sua parte, em relação a uma mulher adulta, apenas por possuir este "objeto" que, como bem sugeriu Fernanda Young, talvez valha menos que uma barata? (A autora mencionada faz tal sugestão em um romance cujo título provavelmente irá chocar parcela da população possuidora desse "moralismo de puteiro" - a saber, o moralismo dos homens que frequentam os puteiros nos finais de semana e depois voltam para seus lares e dão um beijinho na esposa. Enfim, a obra se chama O pau).

- Finalmente (e aqui vem o spoiler), o terceiro apontamento: o que pode ser, à primeira vista, uma atitude auto-castradora, simbolizada no filme pelo ato de cortar os próprios cabelos (autoinflição a que se submete uma mulher que internalizou a culpa por ter assumido sua sexualidade, ainda que de maneira sutil, a saber, pela forma de se vestir e por não cobrir os cabelos), acaba se revelando, belamente, um ato de solidariedade às mulheres de camadas mais baixas da população.

Como aprendi com o MML - Movimento Mulheres em Luta - as mulheres da classe trabalhadora submetidas a um nível de exploração mais cruel muitas vezes têm dificuldade de entender as reivindicações feitas, por exemplo, por manifestantes como as da Marcha das Vadias.

Dificuldade que talvez ocorra (e novamente aqui há o "dedo" do patriarcado: por que é tão importante reprimir sexualmente as mulheres?) por não terem tido a oportunidade de descobrir as "delícias do sexo". Por associá-lo às constantes investidas num nível assediatório feitas por estranhos ou por brutalidade do próprio marido - que muitas vezes não tem o menor interesse que a mulher desfrute algum prazer do ato, num egoísmo que às vezes chega até a se materializar no "estupro marital". Ato que é tão naturalizado que muitos, sejam homens ou mulheres, não reconhecem como estupro, confundindo-o com sexo. E a bizarra expressão "obrigações matrimoniais" revela, por si só, a falta de consentimento por parte da mulher em crime tão recorrente.

Para finalizar, transcreverei a fala de um personagem apenas para fazer referência a uma outra situação específica:

"Eu seguiria vocês, à espera de um erro".

Naturalmente, qualquer pessoa constantemente seguida, uma hora ou outra seria apanhada em erro.

Pois somos todos humanos. E todos erramos.

(Lembrando que a obra é baseada em acontecimentos reais, mas, tanto na Literatura, quanto no Cinema, existe a liberdade de se misturar realidade com ficção).

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