quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Globalização ou Globalitarismo?


Mais que uma resenha, a intenção aqui é dar livre curso às ideias ante a leitura de Por uma outra globalização, obra do geógrafo Milton Santos, fazendo inclusive associação com outros textos (lembrando que imagens e vídeos - e, portanto, documentários - também podem ser considerados textos. Afinal, mesmo uma imagem pode ser lida) e permitindo-nos mesmo a coloquialidade em alguns pontos.

Ao fazer uma leitura do mundo em que vivemos, o autor observa que é mais adequado falarmos em Globalitarismo que em Globalização, pois poucos atores hegemônicos nos submetem a um regime totalitário, e isso, acrescentamos, em grande parte é feito com o suporte da mídia televisiva, que nos vende um discurso e uma ideologia que alimentam os interesses desses donos da situação.

Além de em nossa sociedade globalitária os indivíduos serem classificados de acordo com "sua capacidade de consumir e pela forma como o fazem", existe um consumidor moldado para sê-lo e para consumir produtos específicos, mais condizentes com seus interesses e situações. O consumidor é criado para ser consumidor. E uma das formas como isso é feito é através da mídia, vendendo-nos um discurso que "antecede a tudo", ou seja: antecede até mesmo o consumo e a produção.

Pesquisas de mercado - inclusive feitas através dos dados que fornecemos de maneira gratuita ao usarmos as redes sociais, mesmo aquelas em que supostamente deveríamos ser resguardados com o direito da privacidade - possibilitam a criação de produtos que irão suprir uma demanda identificada em consumidores em potencial.

O discurso antecedendo a produção e o consumo também se manifesta quando se cria previamente um "nicho de mercado" (criação que pode ser favorecida pelas pesquisas mencionadas no parágrafo anterior) e depois se implanta na mente do cidadão a indispensabilidade do bem a ser produzido e consequentemente consumido.

(continua depois da imagem)


Por exemplo, ao se hipervalorizar informação e a comunicação, isso nos induz a internalizar que possuir um smartphone é necessário (ao mesmo tempo, a comunicação que realmente favoreceria um elo efetivo entre as pessoas é desmantelada e desincentivada - como acontece ao sermos pré-moldados a abraçar mil demandas individuais enquanto o outro é deixado de lado. Milton Santos enfatiza diversas vezes ao longo do texto como o comportamento solidário vem sendo desestimulado, e mais a frente retomaremos esse ponto).

Ainda quanto à precedência do discurso em relação ao produto e ao consumo, e com relação ao consumidor que é criado para ser consumidor, interessante observar que, segundo informação extraída de "Muito além do cidadão Kane", que é um documentário britânico que mostra aos brasileiros exatamente o que a Rede Globo é, inclusive o que a Globo representa (em mais de uma acepção) para o povo brasileiro, segundo este documentário, como dizíamos, a primeira novela veiculada na TV brasileira (na época, a Rede Globo ainda não existia, importante observar) era patrocinada por uma empresa da área da indústria da beleza.

Pergunta retórica: será que isso tem relação com o ideário das brasileiras, no qual a vaidade ocupa um espaço significativo?

Essa questão do consumidor projetado para sê-lo vale também para a indústria automobilística (e muitas outras): na época em que o poder de consumo foi favorecido no Brasil, até pessoas que antes não tinham condição de ter um carro passaram a adquirir esse bem, pois o carro passou a ser visto como um bem essencial em um país onde não se investe em transporte coletivo, que é de conhecimento geral que no Brasil, ao menos, é um serviço de má qualidade. Como já dizia o meme (e muitos deles são realmente instrutivos): "país de primeiro mundo não é onde pobre tem carro, é onde rico anda de ônibus".

Já até foi veiculada a informação segundo a qual a indústria automobilística está por trás dessa opção deliberada em não se investir em transporte coletivo no Brasil.

Outra observação interessante que Milton Santos faz é que há uma "produção científica, globalizada e voluntária da pobreza". Em outras palavras, há uma pobreza que é construída para ser pobre (com o perdão da tautologia).

Assim, "fracassado" não é só aquele quem a grande mídia quer fazer acreditar que é "fracassado". "Fracassado" é também aquele que é construído para desempenhar esse papel social, por exemplo, cada um dos indivíduos que compõe o mercado de reserva, tão importante para a manutenção do Capitalismo.

Ou mesmo aquele que está empregado, mas recebe mal, pois a pobreza deliberadamente construída para assim o ser também se manifesta na "redução do valor do trabalho" (palavras do próprio autor), o que é justamente possibilitado pelo abundante mercado de reserva, que por sua vez é favorecido devido ao fato de estar o mundo superpopuloso.

Como já dissemos alhures, o mencionado mercado de reserva aumenta o poder de barganha do empregador. É só dizer ao trabalhador que ousa abrir a boca para reclamar do salário e das péssimas condições de trabalho:

"Não se acanhe, a porta da rua é serventia da casa, há milhares de infelizes querendo ocupar essa posição que você está rejeitando, ao ter a audácia de dela reclamar".

Acrescente-se a isso o fato de as empresas em geral aplicarem onde se instalam "[...] uma política cega, pois deixa a construção do destino de uma área entregue aos interesses privatísticos de uma empresa que não tem compromissos com a sociedade local", nas palavras do próprio Milton Santos.

Assim, a própria questão do desemprego não é interessante para a empresa que seja resolvida (ao contrário, como já deixamos evidenciado), ocorrendo o mesmo com a questão do meio ambiente (vide o crime em Mariana) e com muitas outras questões locais, e isso acontece pelo fato de geralmente as grandes empresas estarem majoritariamente (ou mesmo exclusivamente) vinculadas ao capital estrangeiro. Destarte, pouco importa a quem esteja dirigindo a empresa os problemas das comunidades onde esteja instalada.

O fato de a direção das empresas estar geralmente associada ao capital estrangeiro, inclusive dificulta a responsabilização jurídica em casos como o do rompimento da barragem em Mariana, que tanto afetou a população local.

E nem é preciso dizer que Luciano Huck, que agora assumiu publicamente sua intenção de se candidatar à presidência, está, sempre esteve e sempre estará do lado do capital estrangeiro. Consequentemente, com um sujeito desses na presidência a maior parcela dos brasileiros continuaria (botando fé nesse tempo verbal) a ver navios - a exemplo da comunidade afetada pelo crime em Mariana.

E toda essa negligência da direção das empresas com relação ao entorno de onde estão instaladas é apenas um dos problemas advindos com as privatizações.

É aí que entra a soberania das nações. Como nos lembra Milton Santos, as nações não podem ficar tão à mercê da economia internacional e de um pequeno número de grandes empresas que mandam e desmandam.

Nas palavras do próprio autor: "Ao contrário do que se repete impunemente, o Estado continua forte e a prova disso é que nem as empresas transnacionais, nem as instituições supranacionais dispõem de  força normativa para impor, sozinhas, dentro de cada território, sua vontade política ou econômica" e "a cessão de soberania não é algo natural, inelutável, automático, pois depende da forma como o governo de cada país decide fazer sua inserção no mundo da chamada globalização".

Por isso, embora, em Internacionalismo ou extinção, Noam Chomsky toque na possibilidade de um "governo federal mundial", reivindicado por pessoas como Albert Einstein logo após o início da era nuclear, seria mais adequada uma internacionalização que não ocorra por essa via (um governo único) que apagaria as peculiaridades de cada povo, ainda que na noção de nação esteja inculcada tanta ficção para fazer com que indivíduos acreditem ter suficientes características e narrativas em comum.

Quanto a isso, Milton Santos tem uma posição mais sensata, pois compreende a importância da soberania de cada nação.

Outro ponto importante observado pelo geógrafo é o que se ilustra pelo seguinte trecho: "Junte-se a isso [a morte da Política com P maiúsculo] o processo de conformação da opinião pelas mídias, um dado importante no movimento de alienação trazido com a substituição do debate civilizatório pelo discurso único do mercado. Daí o ensinamento e o aprendizado de comportamentos dos quais estão ausentes objetivos finalísticos e éticos": dentre esses comportamentos, a própria competitividade da qual o autor tanto fala, e que também segundo o próprio visa à eliminação do outro.

Resumindo com nossas próprias palavras, não é interessante para a grande mídia, principal alimentadora do projeto neoliberal, que seja, de verdade, disseminado e reproduzido o comportamento solidário, tão caro a Milton Santos.

Na última parte do livro, o autor aborda a diferença entre a cultura de massas e a cultura popular. A popular é espontânea; a de massas, a serviço do mercado (ou seja, das  grandes empresas) faz o que pode para assujeitar a cultura popular, cujo dinamismo por sua vez acaba por incorporar elementos da cultura de massas, e, ao modo antropofágico, oferecer algo realmente rico.

Ao vislumbrar uma outra globalização possível, diferente dessa perversa que a gente vive, e que seria "capaz de garantir para o maior número a satisfação das necessidades essenciais a uma vida humana digna", Milton Santos deposita sua esperança na cultura popular como um elemento vivo que pode nos conduzir a isso que alguns, em tom de  deboche, chamam de utopia, mas que, no fundo, é o que todos queremos (ou ao menos seria o mais sensato a se desejar).

Como disse, no mencionado documentário "Muito além do cidadão Kane" (que foi exibido em 1993 pelo Channel 4, uma rede televisiva pública do Reino Unido), o crítico literário Virgílio Moretzsohn, citando Goethe: "Ler é a arte de desfazer nós cegos, e a pessoa alfabetizada lê, e a pessoa que lê desfaz esses nós".

Então é para isso que a gente lê. Não é para "tirar onda de intelectual". É para ver se a gente para de ver apenas as sombras projetadas nas paredes das cavernas e passa a ver o mundo de fato, livre de falsificações/fabulações ideológicas arquitetadas com o objetivo de nos controlar e nos cegar.

(continua depois da imagem)


E não em vão até ao termo "intelectual" se atribui uma carga pejorativa.

Segundo Milton Santos, o papel do intelectual é justamente casar-se "com o porvir, por meio da busca incansada da verdade".

Então, em um mundo no qual não é interessante para quem dita as regras do jogo que a verdade venha à tona, torna-se providencial escarnecer e zombar dos intelectuais.

E é claro que a grande mídia, principal responsável pela manutenção do poder desses que ditam as regras, vai não só dar respaldo a estes que zombam dos intelectuais, como vai alimentar a fogueira.

Além do mais, ainda segundo o geógrafo, como o dinheiro "é indispensável à existência das pessoas, [...] as formas pelas quais ele é obtido, sejam quais  forem, já se encontram antecipadamente justificadas".

E aí cabe um acréscimo final às ideias do autor: as atividades não  remuneradas, ao contrário, por mais nobres que sejam (e aqui refere-se não somente a quem se dedica a reflexões mais elaboradas, mas a outras funções tão nobres quanto, como o aleitamento materno) serão sempre menosprezadas.