Ao personificar a indesejada das gentes no romance As intermitências da morte, José Saramago nos remete a questionamentos interessantes, como por exemplo à delicada questão da eutanásia.
Cabe nos perguntar se são mesmo "monstros" os familiares que mandam pacientes terminais, muitas vezes inconscientes, para as fronteiras da morte.
E cabe perguntarmos também se são realmente falsos todos os "falsos suicidas" ou se não haveria muitos dentre eles que sinceramente desejavam morrer, a exemplo do avô da família camponesa pioneira da exportação de pacientes agonizantes.
O autor / narrador toca também no outro lado da questão: pacientes terminais tardando a morrer ou não morrendo nunca, como no romance, tornando-se um peso para suas famílias, que não queriam se dedicar aos cuidados pessoais de que o enfermo necessitava: "É certo que também existem, como demasiado bem sabemos, aquelas desalmadas famílias que, deixando-se levar pela sua incurável desumanidade, chegaram ao extremo de contratar os serviços da máphia para se desfazerem dos míseros despojos humanos que agonizavam interminavelmente entre dois lençóis empapados de suor e manchados pelas excreções naturais, mas essas merecem a nossa repreensão, (...)".
Saramago, que ao escrever As intermitências da morte já tinha mais de oitenta anos, nos faz pensar também sobre a condição da velhice que se desdobra na questão da previdência quando a expectativa de vida aumenta no mundo todo e na situação das agências de seguro que, no romance, aparece representada por uma companhia que decreta que a partir dos oitenta anos as pessoas estão, para todos os efeitos, mortas, pois esta é a idade em que normalmente se morre. Saramago nos dá a incômoda impressão de que os velhos, ele incluído antes de encontrar aquela a quem retrata, são "o vaso ruim que não quebra".
Nesse romance metalinguístico (pois o narrador se dobra constantemente sobre o seu ofício, sobre a narração em si e sobre seu feitio, no momento mesmo em que a obra parece irromper da mente de seu criador), o autor, atento a tudo, não nos deixa escapar nada, reproduzindo, por exemplo, os exaustivos salamaleques verbais indispensáveis quando nos dirigimos a autoridades hierarquicamente superiores ou a condição de "pinguim de geladeira" de um monarca ou ainda, aqui minuciosamente, a atuação dos jornais como "barómetros da moralidade pública".
Saramago, que antes de se consagrar como escritor exerceu profissões como a de serralheiro, no romance também dá voz a um porteiro como detentor de uma sabedoria que não se encontra em nenhum dicionário.
Quando no romance aparece o aprendiz de filósofo, pensando na "morte da bezerra", ou melhor, na morte do peixe do aquário, que viria rápido caso o aprendiz não trocasse a água, Saramago nos faz lembrar de Derrida, pois tal personagem, o aprendiz de filósofo, sugere adotar o termo mortes, no plural, ao invés de morte, no singular, já que outros seres, que não os humanos, também morrem, e Derrida em sua obra O animal que logo sou reflete sobre usarmos o termo "o Animal" no singular para nos referirmos a todo um conjunto de seres viventes: "Nem uma espécie, nem um gênero, nem um indivíduo, é uma irredutível multiplicidade vivente de mortais". E para se opor à lacuna filosófica gerada por essa generalidade, cria o termo animot. Assim, o diálogo do aprendiz de filósofo com o espírito que paira sobre as águas parece ser reflexo do que foi trabalhado recentemente nos estudos filosóficos deste mundo que Saramago mimetiza, embora o narrador posteriormente não se decida se há uma única morte para os restantes animais que não os seres humanos junto com os vegetais (o que seria também uma generalidade) ou se para cada gênero dos respectivos reinos há uma morte sectorial respectiva, mas narrador que também prevê o(a) leitor(a) "à cata de contradições, deslizes, omissões e faltas de lógica".
Essas são apenas algumas questões que nos suscita esse romance que toma um rumo surpreendente, questões às quais não podemos reduzir esse romance inesgotável, por grandioso que é, à altura do vencedor de um prêmio Nobel.