domingo, 25 de julho de 2021

Há algo de podre no reinado da Globo

 


“O que é necessário é o direito

de publicar o que se crê ser verdade,

sem precisar temer intimidações ou

chantagens de qualquer lado”

George Orwell


Partindo do pressuposto de que “o inimigo do meu inimigo não necessariamente é meu amigo”, iniciaremos a explanação que visa correlacionar o universo fictício de 1984 a dados de nossa realidade material e concreta.

O referido romance, de autoria de George Orwell, não é “banal”, como se disse recentemente. Tal adjetivo associado a livro tão emblemático só revela uma “demofobia”, já que a mencionada obra caiu no gosto popular (e não em vão, visto que o autor faz análise precisa do momento em que vivia, o que lhe possibilitou projetar um futuro hipotético que muito se assemelha a nossas condições atuais – embora o objetivo de Orwell não tenha sido o de tecer uma profecia, ele contudo esclarece que uma sociedade semelhante à do universo fictício de 1984 poderia vir a existir), e a admiração destinada a essa obra por parte de grupos de diferentes vieses ideológicos só deixa entrever a genialidade de seu autor.

A sociedade descrita no romance é “socialista” (ao menos onde vive Winston, o protagonista), mas, na prática, não se vincula ideologicamente ao que se concebe como socialismo (dentro e fora da ficção), ou, nas palavras do próprio autor: “É óbvio que esses novos movimentos [que se denominavam socialistas] emergiram dos velhos, cujos nomes tendiam a conservar, pagando um falso tributo a sua ideologia”.

E, tal qual ocorre na referida ficção, somos instados a acreditar que “o padrão médio de conforto material aumenta ininterruptamente”, quando, na verdade, em nosso mundo concreto, sob a égide do Capitalismo, nunca se passou tanta fome.

É necessário reiterar que temos ciência de que o modo de produção no romance de Orwell é socialista, ainda que equivocadamente, mas em nosso mundo concreto há esse discurso pronto de que o Capitalismo é o melhor modo de produção no que tange à distribuição de riquezas, o que de modo algum é verdade, e aqui é importante frisar que há uma verdade, sim, ao contrário do que a visão pós-moderna de mundo nos induz a crer. Para ilustrar com palavras do próprio Orwell: “Havia verdade e havia inverdade, e se você se agarrasse à verdade, mesmo que o mundo inteiro o contradissesse, não estaria louco”.

(Ressalte-se que, de acordo com Raymond Williams, Orwell, em seu posicionamento pessoal, optava pelo socialismo democrático e se opunha ao socialismo autoritário).

Também estamos em condições análogas às dos personagens de 1984 quanto à crença de que “mudar de opinião, ou mesmo de atitude política, é uma confissão de fraqueza”. A analogia se dá pois ideologicamente somos todos instados a acreditar que o Capitalismo é o único modo de produção viável ou a melhor das opções, e as pessoas que denunciam as mazelas do Capitalismo são vistas como “fracas”, ou “ingênuas”, como na frase falsamente atribuída a Winston Churchill e que segundo a Wikipédia é de autoria de Georges Clemenceau: “Um homem que não seja um socialista aos 20 anos não tem coração. Um homem que ainda seja um socialista aos 40 não tem cabeça”.

(E há quem questione a credibilidade da Wikipédia, mas essa possibilidade de adulteração da realidade tem justamente a ver com o romance que estamos abordando).

Voltando à frase de autoria duvidosa, interessante que seja sinal de “ter cabeça” defender um sistema no qual você é explorado. Pois, vamos combinar, né, gente? Apenas uma ínfima minoria não é explorada no Capitalismo.

Ainda quanto à questão da ideologia, o trecho de 1984 disponibilizado a seguir é bem ilustrativo: “Todas as crenças, hábitos, preferências, emoções e atitudes mentais que caracterizam nosso tempo são, na verdade, maneiras de reforçar a mística do Partido e de impedir que a verdadeira natureza da sociedade atual seja percebida”.

O Partido, na ficção de Orwell, é um partido único, que centraliza o poder na Oceânia, onde vive o protagonista Winston. E, se esse conjunto de crenças e hábitos é, no romance, propagado pelo Ministério da Verdade, ou MiniVer, em nosso mundo quem se dá a esse trabalho é a Grande Mídia. Um único exemplo desse conjunto de ideias que nos é vendido é que somos instados a acreditar que ser “bacana” (palavra que adquiriu conotação horrível de tanto ser mal empregada e emprego este também vinculado a um viés ideológico específico) é possuir a bolsa da marca X ou Y, mesmo que você tenha que se matar de trabalhar para adquiri-la, e depois vender a imagem oposta ao que realmente é: mero(a) trabalhador(a) assalariado(a).

Como bem salientou o Prof. Dr. Luís Eustáquio Soares (UFES), a Rede Globo é um partido político (se não no sentido estrito, ao menos atua como um). E, complementando a dedução do referido professor, assim como o Partido do romance de Orwell, somos instados a crer que é verdade o que a Rede Globo quer nos induzir a acreditar que é verdade. Como exemplifica novo trecho de 1984: “Tudo o que o Partido reconhece como verdade é a verdade. É impossível ver a realidade se não for pelos olhos do Partido”. Deste modo, tal emissora, assim como as demais, tem sua parcela de responsabilidade quando se questiona a credibilidade em relação ao que ela(s) veicula(m) em seus noticiários. Talvez não propaguem exatamente “fake news”, mas escolhem cuidadosamente como vão embalar/revestir a notícia que nos será vendida.

Ainda quanto à Grande Mídia, o seguinte trecho do romance que ora nos serve de base a reflexões é bem elucidativo: “A invenção da imprensa, contudo, facilitara a tarefa de manipular a opinião pública, e o cinema e o rádio aprofundaram o processo. Com o desenvolvimento da televisão e o avanço técnico que possibilitou a recepção e a transmissão simultâneas por intermédio do mesmo aparelho, a vida privada chegou ao fim. Todos os cidadãos, ou pelo menos todos os cidadãos suficientemente importantes para justificar a vigilância, podiam ser mantidos vinte e quatro horas por dia sob os olhos da polícia, ouvindo a propaganda oficial, com todos os outros canais de comunicação fechados. A possibilidade de obrigar todos os cidadãos a observar estrita obediência às determinações do Estado e completa uniformidade de opinião sobre todos os assuntos existia pela primeira vez”.

Como se observa, no romance 1984 os aparelhos televisivos seriam não apenas transmissores, mas também receptores, ou seja, os personagens são monitorados vinte e quatro horas por dia. A “teletela” é um aparelho que, no romance de Orwell, opera a dupla função: de projetar e também de captar as imagens do que deveria ser a privacidade dos personagens. E se a teletela está presente na sala do programa televisivo Big Brother, como nos lembra Fabio Salvatti no artigo “O Sanduíche-íche e a Teletela” (disponível na internet), por que ela não estaria presente também em nossas casas? (o que é acentuado hoje com a disseminação dos smartphones) Seríamos ingênuos o suficiente para acreditar que a sociedade do espetáculo não aproveitaria a sugestão de Orwell? Se é que já não era uma funcionalidade dos aparelhos televisivos desde o início e que não escapou à observação arguta do autor inglês... Faça o teste: nunca aconteceu de você ver transportado (de maneira adaptada) para um drama fictício da TV uma conversa ou cena ocorrida num seu ambiente íntimo?

E podem me chamar de paranoica. George Orwell também foi acusado disso. De todo modo, pouca diferença faz a existência ou não da teletela num mundo em que praticamente todo mundo tem ciência de que está sendo vigiado (também) pela via dos smartphones.

Interessante também notar a cara de pau da emissora que com o nome de seu programa que atualmente é, pode-se dizer, o carro-chefe de sua programação (ainda que não seja exibido durante todo o ano – mas que o é todos os anos), faz alusão explícita ao romance de Orwell (ainda que a ideia de usar tal nome não tenha sido originalmente concebida pela emissora brasileira).

Cabe ressaltar também que mesmo que a vigilância no referido programa não se dê a partir do aparelho televisivo, conforme sugere Fabio Salvatti em seu artigo, é fato que a vigilância no programa, assim como em nosso dia a dia.

Aí, depois, qual é a solução ante uma pessoa que promove esse “desvelamento” (e não só com relação à vigilância)? Desmoralizá-la, desumanizá-la, fazendo crer que ela não tem dignidade alguma. É fácil para o Partido fazer com que se creia que a pessoa que “não se dispôs ao ato de submissão” de enxergar a realidade tal como Ele quer que a enxerguemos é uma “lunática”, uma “minoria de um”.

Há um esforço constante para que os hereges sejam “derrotados, desacreditados, ridicularizados”, como acontece no romance de Orwell. Ou para que, como observa Raymond Williams, refletindo também a partir do romance 1984, as “figuras públicas dissidentes” sejam vistas como “inimigos públicos”: “não a ‘oposição oficial apropriada’, mas os Vermelhos, Demolidores e Extremistas ‘não-oficiais’ que, ao bom estilo de Mil novecentos e oitenta e quatro, eram vistos como loucos ou culpados de pensamentos-crime”.

Talvez a classe dominante pense que não precisa se apoquentar com o meu discurso, pois, no presente momento, estamos em condições análogas às do universo fictício de 1984: “Nada a temer do lado dos proletários. Abandonados a si mesmos, continuarão trabalhando, reproduzindo-se e morrendo de geração em geração, século após século, não apenas sem o menor impulso no sentido de rebelar-se, como incapazes de perceber que o mundo poderia ser diferente do que é. Os proletários só teriam como tornar-se perigosos se o avanço da técnica industrial exigisse que recebessem melhor educação; contudo, [...] o nível da educação popular na verdade está em declínio”.

Daí se vê o que justifica a atual necessidade de se desmontar as universidades públicas: é perigoso (para a classe dominante) que o povo aprenda a pensar. Mas, diferentemente da previsão feita na ficção orwelliana, o povo pode vir a mostrar sua força.

Atualmente, um dos entraves a essa conscientização que o povo precisa aprender a desenvolver, tem sua relação com a memória, o que é equiparável ao totalitarismo presente nas páginas de 1984: o excesso de informações a que somos constantemente submetidos parece ser algo programado para fragilizar a nossa capacidade de reter informação. Destarte, nossa memória é tão inoperante quanto a dos personagens da ficção de Orwell.

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A título de exemplificação, voltemos um pouco sobre o que dissemos com relação à verdade que nos é vendida pelos meios de comunicação hegemônicos: recentemente, Eduardo Leite concedeu entrevista a Pedro Bial, e transmitindo essa entrevista, a Globo quer que acreditemos que ela apoia a causa LGBTQIA+, quando, na verdade, defende o interesse de empresas que, se pudessem, dariam chibatadas na população LGBTQIA+ tal qual os antigos capatazes faziam com os escravos, a título de hipérbole (mas nem tanto). A Rede Globo quer que se creia que a luta LGBTQIA+ deve ser travada apenas dentro dos moldes da sociedade capitalista, quando, nesses moldes, na verdade a situação NUNCA será de fato solucionada. Para saber mais, consultar a excelente matéria veiculada no site do PSTU.

Terminaremos com a deixa, a ser brevemente desenvolvida, de Irving Howe (extraída de um texto também sobre 1984): “o Estado totalitário é intrinsecamente inimigo da liberdade erótica”. Assim, o totalitarismo inverte a equação e aqueles que se permitem o prazer erótico são vistos como inimigos. Pois “tudo o que não é calculado é subversivo” (frase de Howe). Afinal, ainda para Irving Howe, “esses impulsos [sexuais] talvez se revelem uma das forças mais duradouras de resistência ao Estado totalitário” (donde se conclui que o prazer é perigoso para quem detém o poder).

Desse modo, quem ainda se permite, quem ainda se entrega ao deleite erótico é visto como um “monstro social” (e a sociedade em geral também é induzida a enxergar assim quem desfruta do prazer, sem fazer questão de esconder que o faz).

E nem é preciso lembrar que, contraditoriamente, na década de 1980 a própria Rede Globo (apenas uma das instituições para as quais a erotização e a carga subversiva por ela propiciada constitui incômodo) estimulou a sexualidade (até precoce) de milhares de espectadores com o programa da Xuxa, como bem observa a pesquisadora estadunidense Amelia Simpson. Mas isso já daria um outro post.

terça-feira, 27 de abril de 2021

Fundamental


Um livro necessário, O mito da beleza, de Naomi Wolf, não é apologia à feiura ou defesa de que não se use batom, mas crítica a um mito que estabelece um padrão sempre inatingível (e programado para ser assim) e defesa das diversas formas de beleza, até as que incluem as rugas, já que estas são indicadoras de experiência, que no caso dos homens costuma ser valorizada em nossa cultura.

Quando uma mulher pode até ser demitida "por ter perdido sua Imagem de Coelhinha", descortina-se o absurdo da questão.

Para Naomi, o mito da beleza foi criado com o intuito de refrear o feminismo, roubando a energia feminina e mexendo com a auto-estima das mulheres, reforçando sua insegurança.

Pois, assim como a cada geração de mulheres que despertava, a seguinte era induzida a "voltar para casa", uma outra maneira de obstar a conquista das mulheres é fazer com que elas se sintam incapazes, e isto é fácil quando se impõe a elas um ideal sempre inatingível de beleza - elas precisam se sentir aquém (e a estética preencheu muito bem essa lacuna).

As mulheres, conforme sugere Wolf, impõem a si mesmas a obrigação quanto à "beleza", o que acaba por cercear a sua liberdade, pois retira sua autonomia quanto ao próprio destino.

Um padrão de beleza sempre inalcançável, além de desencadear uma frustração constante com o próprio corpo e com a própria imagem, instala doenças comportamentais como a anorexia e a bulimia.

Algo interessante que Naomi Wolf aborda é a QBP - Qualificação de Beleza Profissional - que tem sido "institucionalizada extensamente como condição para contratação e promoção de mulheres", ou seja, uma justificativa para julgá-las pela aparência no ambiente de trabalho, mas que ao mesmo tempo não é um parâmetro muito preciso em suas exigências, de forma a tornar a mulher sempre sem saída se seu caso for levado aos tribunais. Sim, mulheres foram parar nos tribunais e tiveram a causa perdida por seus modos de se vestir ou outras questões ligadas à aparência.

Um diálogo hipotético e imaginário (porém construído de forma que o interlocutor imaginário apresente dados históricos reais) de uma mulher com um advogado, diante de seu guarda-roupa antes de ir trabalhar, ilustra bem como a QBP deixa as mulheres encurraladas. Qualquer que seja a escolha (mais, ou menos, recatada; mais, ou menos, "feminina"), esta pode ser usada contra ela.

Além do mais, o fracasso das mulheres quanto à indumentária (mesmo fora do local de trabalho) é inevitável quando a norma quanto às vestimentas está em "constante transformação". Até porque as regras quanto a isso não param de mudar, e "foram criadas para não parar de mudar". Justamente para manter as mulheres nesse "laço".

Aprofundando a  argumentação com trecho da própria Wolf: "Como a aparência das mulheres é usada para justificar o fato de elas serem molestadas, bem como o de serem demitidas, o que os trajes das mulheres tentam dizer é interpretado erroneamente de forma contínua e deliberada".

O fato de em alguns locais de trabalho ser exigido que os homens usem uniforme, mas não que as mulheres o façam, joga para elas a responsabilidade de qualquer coisa que venha a ocorrer e que puder ser creditada ao seu modo de se vestir. O que deixa entrever mais uma armadilha para obstar (ou ao menos dificultar) a inserção e a permanência da mulher no mercado de trabalho.

Num contexto mais amplo quanto à QBP (que não se refere apenas ao modo de se vestir, mas que pode até induzir a trabalhadora a ver como necessidade uma plástica ou intervenção cirúrgica), depreende-se da narrativa de Wolf que as mulheres não vão selar de vez sua permanência no mercado de trabalho enquanto estiverem sob o controle dessa camisa de força que é o mito da beleza (pode ser que, para alguns, o livro de Naomi Wolf, publicado em 1991, esteja "datado", se se considerar que as mulheres efetivamente conquistaram o mercado de trabalho. Mas sempre podem ocorrer retrocessos - o que esperamos que não ocorra - e os constrangimentos relacionados à QBP ainda se verificam nos dias de hoje).

Ainda segundo Wolf, a QBP deixa as mulheres psicologicamente vulneráveis, o que favorece quem explora sua mão de obra.

Em outro contexto permeado pelo mito da beleza, este, segundo a autora, desmantela a união entre as mulheres, pois as faz julgarem umas às outras pela aparência e incita a competição e a rivalidade, ao transformar uma em adversária de todas as outras.

O mito destrinchado por Wolf também joga as mulheres idosas contra as jovens e vice-versa. Isso as prejudica, ao diferenciá-las do que fazem os homens entre si, ou seja, estes criam uma rede de apoio, mesmo que não travem relações pessoais com cada um dos membros do grupo.

Quanto à sexualidade, a autora dá a entender que esta não necessariamente tem relação com a aparência, e: "Quando os homens e as mulheres se olharem fora dos limites do mito da beleza, haverá maior erotismo entre os sexos, da mesma forma que maior honestidade. Nós não somos tão incompreensíveis uns aos outros quanto neste momento querem que acreditemos ser". E ainda: "A maioria das mulheres, no íntimo, se lhes fosse dada a escolha, preferiria um eu sexual e corajoso e não a imposição de um Outro eu lindo e genérico".

Ainda no campo da sexualidade, há toda uma cultura - desde o rock and roll e piadas à literatura e à pintura - que remete ao desejo masculino, enquanto no que tange ao desejo feminino há uma lacuna cultural que mantém as mulheres numa ignorância sexual.

Isso se desencadeia numa situação que até contribui para um número mais alto de abortos, pois mulheres bem informadas sobre a sua sexualidade e incentivadas a desfrutar do prazer sexual redobrariam a atenção quanto aos métodos contraceptivos. Diz-nos Wolf: "Se a sexualidade da mulher fosse valorizada e estimulada com tal atenção que elas pudessem se proteger sem medo de prejudicar a sensação sexual, metade da tragédia do aborto passaria a ser coisa do passado".

Quanto a isso, interessante a observação que faz Pablo Villaça a respeito do filme Ninfomaníaca, de Lars von Trier: "que um filme sobre o desejo feminino gere tanta polêmica em 2014 é um triste sinal de nosso insistente atraso moral" (trecho colhido em texto disponível no site Cinema em Cena, sobre o volume 2 do referido filme).

E, permitindo-nos aqui uma digressão, por falar nesse filme de Trier, infere-se que este se equivocou na construção da protagonista, pois tal personagem se crê uma má pessoa, e no entanto Joe teve um pai generoso e compreensível e afável e aberto a lhe ensinar sobre sexualidade. Segundo se infere de informações concedidas por Naomi Wolf, seria mais verossímil o contrário: se Joe se enxerga como má, o mais coerente é que ela tivesse sido molestada, pois, de acordo com Wolf, "estudos clínicos de pessoas que sobreviveram ao incesto revelam que elas têm medo de que 'seu prazer sexual não seja uma coisa boa [...] a maioria acredita que foram elas que fizeram algo de errado, que deveriam ser castigadas e que, se ninguém vai fazer justiça, elas mesmas se encarregarão disso'". Tais vítimas, portanto, incorrem em comportamento autodestrutivo e têm tendência à anorexia.

Voltando ao filme de Trier, como o pai de Joe é generoso com ela inclusive fornecendo uma educação sexual sincera e sem tabus, seria mais coerente que ela não se visse como uma pessoa má. Pois estaria mais apta a enxergar a sexualidade como algo natural.

Outro aspecto que o livro de Naomi aborda é em relação à cultura de massas (na época em que o livro foi escrito tal situação era mais recorrente nas revistas destinadas ao público feminino): Wolf não cessa de enfatizar que os anunciantes (muitas vezes diretamente relacionados à indústria da beleza, como empresas de cosméticos e clínicas de cirurgia estética) inclusive têm o poder de decidir quanto ao conteúdo das matérias veiculadas, portanto, estas em sua maioria reforçam o mito da beleza.

Discorrendo sobre as agressivas cirurgias estéticas que são praticamente uma imposição às mulheres, diz-nos a autora de O mito da beleza: "Se todas as mulheres pudessem escolher conviver consigo mesmas como são, a maioria provavelmente faria essa opção".

Como sugere a própria argumentação de Naomi Wolf, a mulher que ousa fazer esses questionamentos em relação ao mito da beleza é acusada de ter algum problema. Mas o que O mito da beleza revela é que a sociedade em geral é que tem um problema com a emancipação feminina, por isso cria formas de refreá-la. Conduzida muito provavelmente por um pequeno grupo que detém o poder e nela incute seus anseios, a sociedade cria mecanismos para dificultar a ascensão das mulheres que está em curso já há algum tempo. E a forma mais evidente - e eficiente - com que isso é feito hoje é através do mito da beleza: "Quanto mais fortes as mulheres se tornassem em termos políticos, maior seria o peso do ideal de beleza sobre seus ombros, principalmente para desviar sua energia e solapar seu desenvolvimento".

Há muitas outras informações relevantes no livro, que é uma leitura agradável de ser feita. Agradável, por ter um ritmo contagiante e fluido, difícil de largar... contudo, à maneira do médico ou do psicólogo em formação, que têm como objeto de comparação eles mesmos, quando estudam doenças ou "desvios" de comportamento, é essa a dificuldade que a leitura apresenta: algumas identificações dolorosas, em relação a esse mito que assujeita (ou já assujeitou, em anterior fase da vida) tantas de nós, talvez todas nós, às vezes mesmo quando dele temos consciência. Assim mesmo é uma leitura necessária, se quisermos romper esse ciclo de opressão e libertar dessas amarras as gerações vindouras (e a verdade é que a linguagem objetiva e leve de Naomi Wolf se sobrepõe a qualquer identificação que possa ser incômoda).

Ler O mito da beleza... é fundamental.

sexta-feira, 5 de março de 2021

O tempo, o tártaro e o desfecho


Antes de mais nada, é preciso deixar claro que não vou dar detalhes quanto ao enredo desse livro do italiano Dino Buzzati, visto que estes podem ser acessados pela via de inúmeras videorresenhas disponíveis no YT. A intenção aqui é apenas compartilhar inferências propiciadas pelo romance O deserto dos tártaros.

O meu exemplar é já bem antigo (pois foi comprado em sebo, pela minha mãe, que me presenteou) e eu, que sei apreciar as coisas (e pessoas) velhas (e aqui o uso do verbo "apreciar" evidencia que o que sinto não é mera "afeição genérica que é própria dos jovens para com as velhas gerações"), fui observando as marcas do tempo: cada nódoa numa página como a marca indelével que nos deixa uma pessoa, uma situação. Uma cicatriz - metafórica ou não.

E esse é um livro também sobre a passagem do tempo. E se tártaro é (as duas acepções mencionadas a seguir se observam igualmente no idioma italiano), além de um agrupamento étnico, também aquilo que se acumula nos dentes, camada por camada, até se petrificar, até se tornar uma película extra, tal qual o revestimento reforçado de uma muralha (ao modo daquelas do Forte Bastiani), nesse caso, tártaro pode ser também uma metáfora para o tempo que se sedimenta e se solidifica conforme passa, tornando-se quase algo autônomo, ao modo de um fóssil que denuncia o que anteriormente fora vivo.

Na tentativa de desenrijecer e rearticular esse tempo fossilizado, assim como na de preenchê-lo, costumamos inventar uma busca que, com relação ao protagonista Giovanni Drogo, é mais uma situação hipotética e não específica que ele vai projetando no futuro, embora haja também uma situação específica que ele aguarda com esperança.

No que diz respeito à nossa trajetória existencial, essa busca é a busca incessante a que todos nos dedicamos (ao mesmo tempo, às vezes sem saber exatamente o que buscamos - como Drogo, portanto) tal como expressa por Walt Whitman: "[...] onde está o que parti para buscar tanto tempo atrás? / E por que ainda não foi encontrado?"

Essa busca acaba sendo uma desculpa para permanecermos no caminho. Um motivo inventado para atenuar o tédio existencial. E se cada um escolhe um motivo diferente, isso só diz sobre a criatividade do ser humano. Existem tantos caminhos quanto há pessoas na Terra. Cada um com sua busca obstinada e única.

Fazendo um paralelo com um outro livro, que me é tão caro (a saber: Moby Dick, de Herman Melville), acontece também, nessa incessante busca por uma busca, que, na falta de jeito de arranjar uma desculpa (motivo) própria(o) para justificar a vida, tome-se a(o) de outrem em empréstimo, como faz Ishmael, entrando de gaiato naquele navio (o Pequod), tal como observado por Harold Bloom: "Ismael se lança a uma busca sem busca que não é sua".

Mas mesmo nesses casos em que se toma a busca de outro em empréstimo, há originalidade, pois aquele que a toma emprestada irá revesti-la a seu modo.

A narrativa de Buzzati também possibilita entrever que, se se deixar sugestionar e ir ficando num lugar que supomos não ter sido feito para nós é passividade, ficar esperando grandes acontecimentos é não só igualmente passividade, como também ilusão.

Assim, no final das contas, na relação entre atividade e passividade, talvez pouco importe qual pesa mais (no que Sartre discordaria, ao que parece): no fim, todos desembocaremos no mesmo mar ("de chumbo") e mesmo aquele rio que percorreu seu trajeto de forma (aparentemente) vã, contudo deixou tracejado no solo seu leito.

Mas talvez uma mensagem importante que se possa extrair do romance de Dino Buzzati é que não precisamos ficar esperando grandes eventos, e sim fruir a vida com as condições que ela se nos apresenta.

(continua depois da imagem)


Quanto a isso, tanto a sabedoria popular quanto a carta "Viagem", do Tarô de Osho, nos dizem que, mais importante que as metas que estipulamos, é a trajetória em si.

E se você esperava um desfecho melhor desse texto que por ora se lhe apresenta diante dos olhos, essa sua expectativa também tem relação com o romance de Dino Buzzati.