Antes de mais nada, é preciso deixar claro que não vou dar detalhes quanto ao enredo desse livro do italiano Dino Buzzati, visto que estes podem ser acessados pela via de inúmeras videorresenhas disponíveis no YT. A intenção aqui é apenas compartilhar inferências propiciadas pelo romance O deserto dos tártaros.
O meu exemplar é já bem antigo (pois foi comprado em sebo, pela minha mãe, que me presenteou) e eu, que sei apreciar as coisas (e pessoas) velhas (e aqui o uso do verbo "apreciar" evidencia que o que sinto não é mera "afeição genérica que é própria dos jovens para com as velhas gerações"), fui observando as marcas do tempo: cada nódoa numa página como a marca indelével que nos deixa uma pessoa, uma situação. Uma cicatriz - metafórica ou não.
E esse é um livro também sobre a passagem do tempo. E se tártaro é (as duas acepções mencionadas a seguir se observam igualmente no idioma italiano), além de um agrupamento étnico, também aquilo que se acumula nos dentes, camada por camada, até se petrificar, até se tornar uma película extra, tal qual o revestimento reforçado de uma muralha (ao modo daquelas do Forte Bastiani), nesse caso, tártaro pode ser também uma metáfora para o tempo que se sedimenta e se solidifica conforme passa, tornando-se quase algo autônomo, ao modo de um fóssil que denuncia o que anteriormente fora vivo.
Na tentativa de desenrijecer e rearticular esse tempo fossilizado, assim como na de preenchê-lo, costumamos inventar uma busca que, com relação ao protagonista Giovanni Drogo, é mais uma situação hipotética e não específica que ele vai projetando no futuro, embora haja também uma situação específica que ele aguarda com esperança.
No que diz respeito à nossa trajetória existencial, essa busca é a busca incessante a que todos nos dedicamos (ao mesmo tempo, às vezes sem saber exatamente o que buscamos - como Drogo, portanto) tal como expressa por Walt Whitman: "[...] onde está o que parti para buscar tanto tempo atrás? / E por que ainda não foi encontrado?"
Essa busca acaba sendo uma desculpa para permanecermos no caminho. Um motivo inventado para atenuar o tédio existencial. E se cada um escolhe um motivo diferente, isso só diz sobre a criatividade do ser humano. Existem tantos caminhos quanto há pessoas na Terra. Cada um com sua busca obstinada e única.
Fazendo um paralelo com um outro livro, que me é tão caro (a saber: Moby Dick, de Herman Melville), acontece também, nessa incessante busca por uma busca, que, na falta de jeito de arranjar uma desculpa (motivo) própria(o) para justificar a vida, tome-se a(o) de outrem em empréstimo, como faz Ishmael, entrando de gaiato naquele navio (o Pequod), tal como observado por Harold Bloom: "Ismael se lança a uma busca sem busca que não é sua".
Mas mesmo nesses casos em que se toma a busca de outro em empréstimo, há originalidade, pois aquele que a toma emprestada irá revesti-la a seu modo.
A narrativa de Buzzati também possibilita entrever que, se se deixar sugestionar e ir ficando num lugar que supomos não ter sido feito para nós é passividade, ficar esperando grandes acontecimentos é não só igualmente passividade, como também ilusão.
Assim, no final das contas, na relação entre atividade e passividade, talvez pouco importe qual pesa mais (no que Sartre discordaria, ao que parece): no fim, todos desembocaremos no mesmo mar ("de chumbo") e mesmo aquele rio que percorreu seu trajeto de forma (aparentemente) vã, contudo deixou tracejado no solo seu leito.
Mas talvez uma mensagem importante que se possa extrair do romance de Dino Buzzati é que não precisamos ficar esperando grandes eventos, e sim fruir a vida com as condições que ela se nos apresenta.
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Quanto a isso, tanto a sabedoria popular quanto a carta "Viagem", do Tarô de Osho, nos dizem que, mais importante que as metas que estipulamos, é a trajetória em si.
E se você esperava um desfecho melhor desse texto que por ora se lhe apresenta diante dos olhos, essa sua expectativa também tem relação com o romance de Dino Buzzati.