terça-feira, 27 de abril de 2021

Fundamental


Um livro necessário, O mito da beleza, de Naomi Wolf, não é apologia à feiura ou defesa de que não se use batom, mas crítica a um mito que estabelece um padrão sempre inatingível (e programado para ser assim) e defesa das diversas formas de beleza, até as que incluem as rugas, já que estas são indicadoras de experiência, que no caso dos homens costuma ser valorizada em nossa cultura.

Quando uma mulher pode até ser demitida "por ter perdido sua Imagem de Coelhinha", descortina-se o absurdo da questão.

Para Naomi, o mito da beleza foi criado com o intuito de refrear o feminismo, roubando a energia feminina e mexendo com a auto-estima das mulheres, reforçando sua insegurança.

Pois, assim como a cada geração de mulheres que despertava, a seguinte era induzida a "voltar para casa", uma outra maneira de obstar a conquista das mulheres é fazer com que elas se sintam incapazes, e isto é fácil quando se impõe a elas um ideal sempre inatingível de beleza - elas precisam se sentir aquém (e a estética preencheu muito bem essa lacuna).

As mulheres, conforme sugere Wolf, impõem a si mesmas a obrigação quanto à "beleza", o que acaba por cercear a sua liberdade, pois retira sua autonomia quanto ao próprio destino.

Um padrão de beleza sempre inalcançável, além de desencadear uma frustração constante com o próprio corpo e com a própria imagem, instala doenças comportamentais como a anorexia e a bulimia.

Algo interessante que Naomi Wolf aborda é a QBP - Qualificação de Beleza Profissional - que tem sido "institucionalizada extensamente como condição para contratação e promoção de mulheres", ou seja, uma justificativa para julgá-las pela aparência no ambiente de trabalho, mas que ao mesmo tempo não é um parâmetro muito preciso em suas exigências, de forma a tornar a mulher sempre sem saída se seu caso for levado aos tribunais. Sim, mulheres foram parar nos tribunais e tiveram a causa perdida por seus modos de se vestir ou outras questões ligadas à aparência.

Um diálogo hipotético e imaginário (porém construído de forma que o interlocutor imaginário apresente dados históricos reais) de uma mulher com um advogado, diante de seu guarda-roupa antes de ir trabalhar, ilustra bem como a QBP deixa as mulheres encurraladas. Qualquer que seja a escolha (mais, ou menos, recatada; mais, ou menos, "feminina"), esta pode ser usada contra ela.

Além do mais, o fracasso das mulheres quanto à indumentária (mesmo fora do local de trabalho) é inevitável quando a norma quanto às vestimentas está em "constante transformação". Até porque as regras quanto a isso não param de mudar, e "foram criadas para não parar de mudar". Justamente para manter as mulheres nesse "laço".

Aprofundando a  argumentação com trecho da própria Wolf: "Como a aparência das mulheres é usada para justificar o fato de elas serem molestadas, bem como o de serem demitidas, o que os trajes das mulheres tentam dizer é interpretado erroneamente de forma contínua e deliberada".

O fato de em alguns locais de trabalho ser exigido que os homens usem uniforme, mas não que as mulheres o façam, joga para elas a responsabilidade de qualquer coisa que venha a ocorrer e que puder ser creditada ao seu modo de se vestir. O que deixa entrever mais uma armadilha para obstar (ou ao menos dificultar) a inserção e a permanência da mulher no mercado de trabalho.

Num contexto mais amplo quanto à QBP (que não se refere apenas ao modo de se vestir, mas que pode até induzir a trabalhadora a ver como necessidade uma plástica ou intervenção cirúrgica), depreende-se da narrativa de Wolf que as mulheres não vão selar de vez sua permanência no mercado de trabalho enquanto estiverem sob o controle dessa camisa de força que é o mito da beleza (pode ser que, para alguns, o livro de Naomi Wolf, publicado em 1991, esteja "datado", se se considerar que as mulheres efetivamente conquistaram o mercado de trabalho. Mas sempre podem ocorrer retrocessos - o que esperamos que não ocorra - e os constrangimentos relacionados à QBP ainda se verificam nos dias de hoje).

Ainda segundo Wolf, a QBP deixa as mulheres psicologicamente vulneráveis, o que favorece quem explora sua mão de obra.

Em outro contexto permeado pelo mito da beleza, este, segundo a autora, desmantela a união entre as mulheres, pois as faz julgarem umas às outras pela aparência e incita a competição e a rivalidade, ao transformar uma em adversária de todas as outras.

O mito destrinchado por Wolf também joga as mulheres idosas contra as jovens e vice-versa. Isso as prejudica, ao diferenciá-las do que fazem os homens entre si, ou seja, estes criam uma rede de apoio, mesmo que não travem relações pessoais com cada um dos membros do grupo.

Quanto à sexualidade, a autora dá a entender que esta não necessariamente tem relação com a aparência, e: "Quando os homens e as mulheres se olharem fora dos limites do mito da beleza, haverá maior erotismo entre os sexos, da mesma forma que maior honestidade. Nós não somos tão incompreensíveis uns aos outros quanto neste momento querem que acreditemos ser". E ainda: "A maioria das mulheres, no íntimo, se lhes fosse dada a escolha, preferiria um eu sexual e corajoso e não a imposição de um Outro eu lindo e genérico".

Ainda no campo da sexualidade, há toda uma cultura - desde o rock and roll e piadas à literatura e à pintura - que remete ao desejo masculino, enquanto no que tange ao desejo feminino há uma lacuna cultural que mantém as mulheres numa ignorância sexual.

Isso se desencadeia numa situação que até contribui para um número mais alto de abortos, pois mulheres bem informadas sobre a sua sexualidade e incentivadas a desfrutar do prazer sexual redobrariam a atenção quanto aos métodos contraceptivos. Diz-nos Wolf: "Se a sexualidade da mulher fosse valorizada e estimulada com tal atenção que elas pudessem se proteger sem medo de prejudicar a sensação sexual, metade da tragédia do aborto passaria a ser coisa do passado".

Quanto a isso, interessante a observação que faz Pablo Villaça a respeito do filme Ninfomaníaca, de Lars von Trier: "que um filme sobre o desejo feminino gere tanta polêmica em 2014 é um triste sinal de nosso insistente atraso moral" (trecho colhido em texto disponível no site Cinema em Cena, sobre o volume 2 do referido filme).

E, permitindo-nos aqui uma digressão, por falar nesse filme de Trier, infere-se que este se equivocou na construção da protagonista, pois tal personagem se crê uma má pessoa, e no entanto Joe teve um pai generoso e compreensível e afável e aberto a lhe ensinar sobre sexualidade. Segundo se infere de informações concedidas por Naomi Wolf, seria mais verossímil o contrário: se Joe se enxerga como má, o mais coerente é que ela tivesse sido molestada, pois, de acordo com Wolf, "estudos clínicos de pessoas que sobreviveram ao incesto revelam que elas têm medo de que 'seu prazer sexual não seja uma coisa boa [...] a maioria acredita que foram elas que fizeram algo de errado, que deveriam ser castigadas e que, se ninguém vai fazer justiça, elas mesmas se encarregarão disso'". Tais vítimas, portanto, incorrem em comportamento autodestrutivo e têm tendência à anorexia.

Voltando ao filme de Trier, como o pai de Joe é generoso com ela inclusive fornecendo uma educação sexual sincera e sem tabus, seria mais coerente que ela não se visse como uma pessoa má. Pois estaria mais apta a enxergar a sexualidade como algo natural.

Outro aspecto que o livro de Naomi aborda é em relação à cultura de massas (na época em que o livro foi escrito tal situação era mais recorrente nas revistas destinadas ao público feminino): Wolf não cessa de enfatizar que os anunciantes (muitas vezes diretamente relacionados à indústria da beleza, como empresas de cosméticos e clínicas de cirurgia estética) inclusive têm o poder de decidir quanto ao conteúdo das matérias veiculadas, portanto, estas em sua maioria reforçam o mito da beleza.

Discorrendo sobre as agressivas cirurgias estéticas que são praticamente uma imposição às mulheres, diz-nos a autora de O mito da beleza: "Se todas as mulheres pudessem escolher conviver consigo mesmas como são, a maioria provavelmente faria essa opção".

Como sugere a própria argumentação de Naomi Wolf, a mulher que ousa fazer esses questionamentos em relação ao mito da beleza é acusada de ter algum problema. Mas o que O mito da beleza revela é que a sociedade em geral é que tem um problema com a emancipação feminina, por isso cria formas de refreá-la. Conduzida muito provavelmente por um pequeno grupo que detém o poder e nela incute seus anseios, a sociedade cria mecanismos para dificultar a ascensão das mulheres que está em curso já há algum tempo. E a forma mais evidente - e eficiente - com que isso é feito hoje é através do mito da beleza: "Quanto mais fortes as mulheres se tornassem em termos políticos, maior seria o peso do ideal de beleza sobre seus ombros, principalmente para desviar sua energia e solapar seu desenvolvimento".

Há muitas outras informações relevantes no livro, que é uma leitura agradável de ser feita. Agradável, por ter um ritmo contagiante e fluido, difícil de largar... contudo, à maneira do médico ou do psicólogo em formação, que têm como objeto de comparação eles mesmos, quando estudam doenças ou "desvios" de comportamento, é essa a dificuldade que a leitura apresenta: algumas identificações dolorosas, em relação a esse mito que assujeita (ou já assujeitou, em anterior fase da vida) tantas de nós, talvez todas nós, às vezes mesmo quando dele temos consciência. Assim mesmo é uma leitura necessária, se quisermos romper esse ciclo de opressão e libertar dessas amarras as gerações vindouras (e a verdade é que a linguagem objetiva e leve de Naomi Wolf se sobrepõe a qualquer identificação que possa ser incômoda).

Ler O mito da beleza... é fundamental.