domingo, 25 de julho de 2021

Há algo de podre no reinado da Globo

 


“O que é necessário é o direito

de publicar o que se crê ser verdade,

sem precisar temer intimidações ou

chantagens de qualquer lado”

George Orwell


Partindo do pressuposto de que “o inimigo do meu inimigo não necessariamente é meu amigo”, iniciaremos a explanação que visa correlacionar o universo fictício de 1984 a dados de nossa realidade material e concreta.

O referido romance, de autoria de George Orwell, não é “banal”, como se disse recentemente. Tal adjetivo associado a livro tão emblemático só revela uma “demofobia”, já que a mencionada obra caiu no gosto popular (e não em vão, visto que o autor faz análise precisa do momento em que vivia, o que lhe possibilitou projetar um futuro hipotético que muito se assemelha a nossas condições atuais – embora o objetivo de Orwell não tenha sido o de tecer uma profecia, ele contudo esclarece que uma sociedade semelhante à do universo fictício de 1984 poderia vir a existir), e a admiração destinada a essa obra por parte de grupos de diferentes vieses ideológicos só deixa entrever a genialidade de seu autor.

A sociedade descrita no romance é “socialista” (ao menos onde vive Winston, o protagonista), mas, na prática, não se vincula ideologicamente ao que se concebe como socialismo (dentro e fora da ficção), ou, nas palavras do próprio autor: “É óbvio que esses novos movimentos [que se denominavam socialistas] emergiram dos velhos, cujos nomes tendiam a conservar, pagando um falso tributo a sua ideologia”.

E, tal qual ocorre na referida ficção, somos instados a acreditar que “o padrão médio de conforto material aumenta ininterruptamente”, quando, na verdade, em nosso mundo concreto, sob a égide do Capitalismo, nunca se passou tanta fome.

É necessário reiterar que temos ciência de que o modo de produção no romance de Orwell é socialista, ainda que equivocadamente, mas em nosso mundo concreto há esse discurso pronto de que o Capitalismo é o melhor modo de produção no que tange à distribuição de riquezas, o que de modo algum é verdade, e aqui é importante frisar que há uma verdade, sim, ao contrário do que a visão pós-moderna de mundo nos induz a crer. Para ilustrar com palavras do próprio Orwell: “Havia verdade e havia inverdade, e se você se agarrasse à verdade, mesmo que o mundo inteiro o contradissesse, não estaria louco”.

(Ressalte-se que, de acordo com Raymond Williams, Orwell, em seu posicionamento pessoal, optava pelo socialismo democrático e se opunha ao socialismo autoritário).

Também estamos em condições análogas às dos personagens de 1984 quanto à crença de que “mudar de opinião, ou mesmo de atitude política, é uma confissão de fraqueza”. A analogia se dá pois ideologicamente somos todos instados a acreditar que o Capitalismo é o único modo de produção viável ou a melhor das opções, e as pessoas que denunciam as mazelas do Capitalismo são vistas como “fracas”, ou “ingênuas”, como na frase falsamente atribuída a Winston Churchill e que segundo a Wikipédia é de autoria de Georges Clemenceau: “Um homem que não seja um socialista aos 20 anos não tem coração. Um homem que ainda seja um socialista aos 40 não tem cabeça”.

(E há quem questione a credibilidade da Wikipédia, mas essa possibilidade de adulteração da realidade tem justamente a ver com o romance que estamos abordando).

Voltando à frase de autoria duvidosa, interessante que seja sinal de “ter cabeça” defender um sistema no qual você é explorado. Pois, vamos combinar, né, gente? Apenas uma ínfima minoria não é explorada no Capitalismo.

Ainda quanto à questão da ideologia, o trecho de 1984 disponibilizado a seguir é bem ilustrativo: “Todas as crenças, hábitos, preferências, emoções e atitudes mentais que caracterizam nosso tempo são, na verdade, maneiras de reforçar a mística do Partido e de impedir que a verdadeira natureza da sociedade atual seja percebida”.

O Partido, na ficção de Orwell, é um partido único, que centraliza o poder na Oceânia, onde vive o protagonista Winston. E, se esse conjunto de crenças e hábitos é, no romance, propagado pelo Ministério da Verdade, ou MiniVer, em nosso mundo quem se dá a esse trabalho é a Grande Mídia. Um único exemplo desse conjunto de ideias que nos é vendido é que somos instados a acreditar que ser “bacana” (palavra que adquiriu conotação horrível de tanto ser mal empregada e emprego este também vinculado a um viés ideológico específico) é possuir a bolsa da marca X ou Y, mesmo que você tenha que se matar de trabalhar para adquiri-la, e depois vender a imagem oposta ao que realmente é: mero(a) trabalhador(a) assalariado(a).

Como bem salientou o Prof. Dr. Luís Eustáquio Soares (UFES), a Rede Globo é um partido político (se não no sentido estrito, ao menos atua como um). E, complementando a dedução do referido professor, assim como o Partido do romance de Orwell, somos instados a crer que é verdade o que a Rede Globo quer nos induzir a acreditar que é verdade. Como exemplifica novo trecho de 1984: “Tudo o que o Partido reconhece como verdade é a verdade. É impossível ver a realidade se não for pelos olhos do Partido”. Deste modo, tal emissora, assim como as demais, tem sua parcela de responsabilidade quando se questiona a credibilidade em relação ao que ela(s) veicula(m) em seus noticiários. Talvez não propaguem exatamente “fake news”, mas escolhem cuidadosamente como vão embalar/revestir a notícia que nos será vendida.

Ainda quanto à Grande Mídia, o seguinte trecho do romance que ora nos serve de base a reflexões é bem elucidativo: “A invenção da imprensa, contudo, facilitara a tarefa de manipular a opinião pública, e o cinema e o rádio aprofundaram o processo. Com o desenvolvimento da televisão e o avanço técnico que possibilitou a recepção e a transmissão simultâneas por intermédio do mesmo aparelho, a vida privada chegou ao fim. Todos os cidadãos, ou pelo menos todos os cidadãos suficientemente importantes para justificar a vigilância, podiam ser mantidos vinte e quatro horas por dia sob os olhos da polícia, ouvindo a propaganda oficial, com todos os outros canais de comunicação fechados. A possibilidade de obrigar todos os cidadãos a observar estrita obediência às determinações do Estado e completa uniformidade de opinião sobre todos os assuntos existia pela primeira vez”.

Como se observa, no romance 1984 os aparelhos televisivos seriam não apenas transmissores, mas também receptores, ou seja, os personagens são monitorados vinte e quatro horas por dia. A “teletela” é um aparelho que, no romance de Orwell, opera a dupla função: de projetar e também de captar as imagens do que deveria ser a privacidade dos personagens. E se a teletela está presente na sala do programa televisivo Big Brother, como nos lembra Fabio Salvatti no artigo “O Sanduíche-íche e a Teletela” (disponível na internet), por que ela não estaria presente também em nossas casas? (o que é acentuado hoje com a disseminação dos smartphones) Seríamos ingênuos o suficiente para acreditar que a sociedade do espetáculo não aproveitaria a sugestão de Orwell? Se é que já não era uma funcionalidade dos aparelhos televisivos desde o início e que não escapou à observação arguta do autor inglês... Faça o teste: nunca aconteceu de você ver transportado (de maneira adaptada) para um drama fictício da TV uma conversa ou cena ocorrida num seu ambiente íntimo?

E podem me chamar de paranoica. George Orwell também foi acusado disso. De todo modo, pouca diferença faz a existência ou não da teletela num mundo em que praticamente todo mundo tem ciência de que está sendo vigiado (também) pela via dos smartphones.

Interessante também notar a cara de pau da emissora que com o nome de seu programa que atualmente é, pode-se dizer, o carro-chefe de sua programação (ainda que não seja exibido durante todo o ano – mas que o é todos os anos), faz alusão explícita ao romance de Orwell (ainda que a ideia de usar tal nome não tenha sido originalmente concebida pela emissora brasileira).

Cabe ressaltar também que mesmo que a vigilância no referido programa não se dê a partir do aparelho televisivo, conforme sugere Fabio Salvatti em seu artigo, é fato que a vigilância no programa, assim como em nosso dia a dia.

Aí, depois, qual é a solução ante uma pessoa que promove esse “desvelamento” (e não só com relação à vigilância)? Desmoralizá-la, desumanizá-la, fazendo crer que ela não tem dignidade alguma. É fácil para o Partido fazer com que se creia que a pessoa que “não se dispôs ao ato de submissão” de enxergar a realidade tal como Ele quer que a enxerguemos é uma “lunática”, uma “minoria de um”.

Há um esforço constante para que os hereges sejam “derrotados, desacreditados, ridicularizados”, como acontece no romance de Orwell. Ou para que, como observa Raymond Williams, refletindo também a partir do romance 1984, as “figuras públicas dissidentes” sejam vistas como “inimigos públicos”: “não a ‘oposição oficial apropriada’, mas os Vermelhos, Demolidores e Extremistas ‘não-oficiais’ que, ao bom estilo de Mil novecentos e oitenta e quatro, eram vistos como loucos ou culpados de pensamentos-crime”.

Talvez a classe dominante pense que não precisa se apoquentar com o meu discurso, pois, no presente momento, estamos em condições análogas às do universo fictício de 1984: “Nada a temer do lado dos proletários. Abandonados a si mesmos, continuarão trabalhando, reproduzindo-se e morrendo de geração em geração, século após século, não apenas sem o menor impulso no sentido de rebelar-se, como incapazes de perceber que o mundo poderia ser diferente do que é. Os proletários só teriam como tornar-se perigosos se o avanço da técnica industrial exigisse que recebessem melhor educação; contudo, [...] o nível da educação popular na verdade está em declínio”.

Daí se vê o que justifica a atual necessidade de se desmontar as universidades públicas: é perigoso (para a classe dominante) que o povo aprenda a pensar. Mas, diferentemente da previsão feita na ficção orwelliana, o povo pode vir a mostrar sua força.

Atualmente, um dos entraves a essa conscientização que o povo precisa aprender a desenvolver, tem sua relação com a memória, o que é equiparável ao totalitarismo presente nas páginas de 1984: o excesso de informações a que somos constantemente submetidos parece ser algo programado para fragilizar a nossa capacidade de reter informação. Destarte, nossa memória é tão inoperante quanto a dos personagens da ficção de Orwell.

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A título de exemplificação, voltemos um pouco sobre o que dissemos com relação à verdade que nos é vendida pelos meios de comunicação hegemônicos: recentemente, Eduardo Leite concedeu entrevista a Pedro Bial, e transmitindo essa entrevista, a Globo quer que acreditemos que ela apoia a causa LGBTQIA+, quando, na verdade, defende o interesse de empresas que, se pudessem, dariam chibatadas na população LGBTQIA+ tal qual os antigos capatazes faziam com os escravos, a título de hipérbole (mas nem tanto). A Rede Globo quer que se creia que a luta LGBTQIA+ deve ser travada apenas dentro dos moldes da sociedade capitalista, quando, nesses moldes, na verdade a situação NUNCA será de fato solucionada. Para saber mais, consultar a excelente matéria veiculada no site do PSTU.

Terminaremos com a deixa, a ser brevemente desenvolvida, de Irving Howe (extraída de um texto também sobre 1984): “o Estado totalitário é intrinsecamente inimigo da liberdade erótica”. Assim, o totalitarismo inverte a equação e aqueles que se permitem o prazer erótico são vistos como inimigos. Pois “tudo o que não é calculado é subversivo” (frase de Howe). Afinal, ainda para Irving Howe, “esses impulsos [sexuais] talvez se revelem uma das forças mais duradouras de resistência ao Estado totalitário” (donde se conclui que o prazer é perigoso para quem detém o poder).

Desse modo, quem ainda se permite, quem ainda se entrega ao deleite erótico é visto como um “monstro social” (e a sociedade em geral também é induzida a enxergar assim quem desfruta do prazer, sem fazer questão de esconder que o faz).

E nem é preciso lembrar que, contraditoriamente, na década de 1980 a própria Rede Globo (apenas uma das instituições para as quais a erotização e a carga subversiva por ela propiciada constitui incômodo) estimulou a sexualidade (até precoce) de milhares de espectadores com o programa da Xuxa, como bem observa a pesquisadora estadunidense Amelia Simpson. Mas isso já daria um outro post.