quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Azul é a cor mais triste

Quatro irmãs. Uma delas já falecida desde o momento em que começamos a acompanhar a narrativa. As outras três tentando lidar com o luto: Avery, com sua frieza lúcida; Bonnie, lutadora de boxe estoica; e Lucky, constantemente comparada a um lobo e com a personalidade selvagem.

Se, como disse Antonio Candido no ensaio "O direito à Literatura", precisamos da ficção, o romance As irmãs Blue, de Coco Mellors, foi-me proveitoso para elaborar algumas questões internas que andam me rondando.

Conforme se depreende da leitura de Recado do nome, de Ana Maria Machado, os nomes das personagens, numa obra literária, fornecem poderosas pistas sobre esses entes fictícios e sobre a narrativa em si, podendo consistir numa eficaz chave interpretativa.

Quanto ao romance de Coco Mellors, pode-se dizer, com relação ao sobrenome indicado já no título, que a cor azul, no contexto cultural dos Estados Unidos, carrega uma conotação de tristeza, e, por curioso que seja, o drama das irmãs do romance de Mellors nos proporciona um entretenimento prazeroso e leve (ainda que por vezes sejamos expostos a um verdadeiro turbilhão) e a trama é poderosa em nos conduzir à imersão.

Porém, algo que tenho notado nas obras literárias contemporâneas escritas em língua inglesa é o número excessivo de comparações, que geralmente beiram o ridículo, tal qual: "Era uma bela tarde de verão, e a luz, enquanto eles subiam a ladeira, era como o amarelo intenso da boa manteiga francesa."

Na edição em português do Brasil de As irmãs Blue, encontra-se, na mesma página de onde foi retirada a citação acima, outra comparação, sem falar da que está presente na página anterior. Daria pra fazer uma pesquisa de quantas vezes aparece no romance esse recurso, o mais básico das figuras de linguagem.

Mas eu seria ingrata se dissesse que não tirei proveito dessa leitura. O forte da ficção de Coco Mellors a que tive acesso é a construção das personagens que dão título ao livro, quatro irmãs com personalidades complexas e bem distintas umas das outras, cada uma com suas peculiaridades e não propriamente se encaixando tal qual um quebra-cabeça, pois vezes demais ocorrem atritos, comuns em pessoas com esse grau de parentesco.

E aí entra outro ponto forte do romance: diálogos bem encadeados, às vezes com um toque de humor, mas na maioria das vezes profundos e reveladores, que, junto com outras passagens que externam a personalidade das personagens, ressoam em nós por ecoar nossos "exatos pensamentos e sentimentos", tal como reflete Avery, a irmã mais velha.

Convém observar também que, ainda relacionado ao sobrenome da família, mais para o final do livro a escolha da autora se elucida de modo mais aprofundado. E, com advertência de spoiler sutil, mas que se trata de conhecimento prévio que estragaria muito a fruição da obra, prossigo: há, em nossa sociedade, todo esse alarde quanto à descriminalização do aborto, mas será que a maternidade compulsória não cria uma prole doente e, em consequência, uma humanidade doente?

Enfim, o drama das irmãs Blue permite que enxerguemos com mais naturalidade nossas próprias tragédias cotidianas. Nossa vida consiste numa rede intricada de relações que muitas vezes desembocam em interações embaraçosas, e uma obra que mostra que isso é mais comum do que se imagina cumpre sua função. E a fruição de um enredo bem construído, a despeito de alguns (talvez irrelevantes) problemas de revisão e/ou tradução, ajuda (ainda com Antonio Candido) a organizar coisas dentro de nós, o que talvez não ocorresse de outra forma.

Coco Mellors, com seu segundo romance, dá sinais de que podem vir outras produções boas por aí.