“Um sonho dentro de um sonho”, podemos traduzir a epígrafe de Allan Poe, talvez a chave de um conto que é uma narrativa dentro da narrativa, pois, se o conto começa em terceira pessoa, logo o narrador dá a voz ao personagem Peter Winner, que mais adiante se revela na verdade John Landers, que passa a narrar sua história em primeira pessoa. E, como o próprio personagem não sabe se foi John Landers quem matou Peter Winner ou este que matou John Landers, já que este se apaga para assumir a identidade do outro, assim também não sabemos se Peter Winner é uma personagem criada por John Landers, criada no próprio ato de assumir sua identidade, fingindo sê-lo (lembrando que “ficção” é fingir), ou se John Landers é uma personagem criada por Peter Winner, pois, se este morreu, é seu nome que sobrevive e sua personalidade, ao ser imitada, que dita as regras do comportamento de Landers, um revertimento da situação como castigo intrínseco ao crime, tendo o criminoso que carregar sempre um cadáver no próprio corpo.
Essa quebra e posterior alternância do modo de narrar não é o “tipo de narração em primeira pessoa bem definido, o do narrador que se apresenta, apresenta seu mundo e conduz a ação”, simplesmente. Mas, questiona Jacques Rancière, “será que a literatura não se afirma como tal onde essa posição do narrador se desfaz [?]” e cita exemplos entre os quais não se encontra o nosso, o do conto de Rubem Fonseca, “Romance negro”, mas onde ele se encaixaria perfeitamente.
Na passagem citada de Rancière, ele está retrucando o posicionamento de Searle, para quem o texto, quanto mais enganador, mais poderia ser definido como literatura. Daí que ele elege o relato na primeira pessoa e o teatro como os “melhores casos”.
Mas, no conto de Rubem Fonseca, ao revezar o relato de terceira para primeira pessoa, aí que ele se torna mais “enganador”, pois é como se o narrador em terceira pessoa cedesse o discurso ao narrador em primeira pessoa para que este relate o “acontecido” com suas próprias palavras, garantindo a verossimilhança, ou para retratar o momento exato em que o personagem se confessa à Clotilde, garantindo naturalidade à cena retratada.
Quanto ao narrador em primeira pessoa, Winner, ou melhor, Landers, mas fazendo papel daquele, diz no debate do festival literário de que participa que o crime perfeito é como uma máquina. E o crime que ele mesmo, Landers, cometeu, torna-se perfeito com a reação de Clotilde, sua mulher, reação que é uma engrenagem imprevista dessa máquina, o acaso que não existiria na obra de arte, como não existe na mecânica, diz Winner (na verdade Landers), citando Baudelaire. Mas, ao contrário do que disse Winner – ou Landers – no debate, ao responder P. D. James, no caso de seu próprio crime o acaso contribui justamente para aperfeiçoar ainda mais um crime impecável, já que Clotilde Farouche diz ao inspetor Papin que Winner enlouqueceu. Apenas para Landers, obviamente, isso foi um acaso, pois para Rubem Fonseca, o autor do conto, este realmente é uma máquina, cada detalhe pensado minuciosamente por um raciocínio perspicaz – como deveria ser o de um investigador policial – como uma peça a ser encaixada, como engrenagem essencial da máquina ficcional. Um perfeito exemplo de literatura que talvez Searle não admitisse.
E nessa máquina, nessa teia, nesse jogo ficcional, o jogador principal (excetuando-se o criador do jogo, Rubem Fonseca), vendo-se acuado por não conseguir revelar seu crime e, portanto ressurgir das sombras do morto cuja vida adotou, dando-lhe vida ao matar a si próprio, depara-se com os frutos do mar de uma peixaria, entre os quais vê várias conchas “de variadas cores, texturas e formas – redondas, piramidais, espiraladas, algumas disformes, umas cheias de estrias, outras lisas como um espelho” (FONSECA, “Romance negro”) e, ao ver essas inscrições nas conchas, reconhece o valor da vida e adquire um “ponto de equilíbrio, uma sabedoria que não é nem a do poeta nem a do filósofo, mas a do bobo da aldeia depois que viu a sereia” (FONSECA, “Romance negro”), afinal, ele, um escritor, reconhece nessas inscrições a “escritura natural”, segundo Derrida, ou a “escrita mais que escrita”, segundo Rancière, “a escrita viva do espírito, aquela em que o sentido não se separa do corpo que o apresenta. Às perturbações e tormentos da religião da escrita opõe-se esse sentido lacrado nas coisas, mudo ainda para quem não é capaz de decifrar seu sentido, reservado à comunidade histórica suscetível de transformá-la em seu princípio de vida” (RANCIÈRE, Políticas da escrita).
Então, Landers vê nas inscrições (mesmo na aparente falta de inscrição das conchas “lisas como um espelho”, a própria concha sendo uma “inscrição calcária”) das conchas uma verdade que ao mesmo tempo que só ele vê, está ao alcance de todos. Essa “escritura natural” que recebe este nome por metáfora (DERRIDA, Gramatologia), metáfora que jamais passaria despercebida por um escritor, no caso, o personagem Landers, que, ficcionalmente, pratica a escritura no seu sentido próprio.
Referências bibliográficas:
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2008.
FONSECA, Rubem. Romance negro. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
Referências bibliográficas:
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2008.
FONSECA, Rubem. Romance negro. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
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